Título: Combate à desigualdade, o início para a nova abolição
Autor: Oded Grajew
Fonte: Valor Econômico, 14/03/2005, Opinião, p. A8

O Brasil orgulha-se de ter conquistado campeonatos em várias modalidades e de ser reconhecido como um dos melhores em diversas áreas. Ao mesmo tempo, o país também carrega o título de ser um dos mais, se não o mais socialmente injusto. Estamos mantendo esta situação vergonhosa ao longo dos séculos, mesmo com um dos maiores índices de crescimento do mundo. Embora a solidariedade, a fraternidade e o combate à desigualdade venham sendo as prioridades das religiões, dos movimentos humanistas, éticos e espirituais, ao longo da História, estes nunca foram prioritários na sociedade brasileira. É como se não conseguíssemos entender e praticar aquilo que as grandes lideranças da Humanidade sempre pregaram. Todas elas, sem exceção, não clamaram pelo "crescimento" ou "desenvolvimento": sempre lutaram pela Justiça, arriscando e, muitas vezes, sacrificando a própria vida. No Brasil, não temos sido sequer suficientemente sábios e competentes para entender que sociedades justas são mais prósperas, competitivas, sustentáveis e desenvolvidas. Nossa desigualdade cria mecanismos que a reproduzem. Crianças pobres freqüentam escolas públicas, quase sempre sucateadas. Os filhos dos nossos governantes (responsáveis pela qualidade dos serviços públicos) vão para escolas particulares, pagas. As campanhas eleitorais, cada vez mais caras, levam ao Legislativo parlamentares que, na maioria das vezes, tomam decisões privilegiando os financiadores de suas campanhas, geralmente integrantes da camada mais rica da população. Combater as desigualdades deve ser o grande foco de todas as políticas públicas, planos de desenvolvimento e ações da sociedade. O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) pode concretizar o acesso de milhões de brasileiros a uma vida digna, fazendo o seguinte, na minha opinião. Em primeiro lugar, sugerindo ao presidente da República que o combate à desigualdade seja a grande prioridade do seu mandato, estabelecendo objetivos para os próximos 15 anos, desdobrados em metas anuais. Seguindo o DIEESE, seriam considerados cinco indicadores: o índice Gini, que mede universalmente a distribuição de renda; a participação do trabalho na renda nacional; o desvio máximo do rendimento regional em relação ao rendimento mediano nacional; o PIB per capita; e a porcentagem dos 40% mais pobres na renda nacional. Pela primeira vez da nossa História, teríamos metas sociais com o mesmo status das metas econômicas.

Um plano de longo prazo e a definição de metas sociais anuais dariam a elas o mesmo status das metas econômicas

Em segundo lugar, o CDES poderia propor a criação do Observatório Brasileiro da Desigualdade, formado pelo IBGE, DIEESE e IPEA, para emitir pareceres sobre o impacto dos programas governamentais no combate à desigualdade. Quero lembrar que, para tanto, não basta beneficiar alguns. É necessário que os pobres sejam muito mais beneficiados que os ricos! É necessário também conclamar os políticos, o Poder Judiciário e a sociedade civil a instituir o combate à desigualdade como grande prioridade de suas ações. Em quarto lugar, a sugestão é a de que o conselho promova seminários temáticos sobre quais medidas poderiam e deveriam ser instituídas pelos três poderes dos governos nacional e regional, sociedade civil, empresas e cidadãos. Países com os melhores indicadores da promoção da igualdade poderão servir de modelo. Não será tarefa fácil, pois as decisões, na maioria das vezes, dependerão dos que ajudaram a construir esta sociedade injusta e daqueles que terão de abrir mão de alguns privilégios e de uma parte do seu poder. Lutar pela justiça sempre significou incomodar interesses muito poderosos, mas sempre dignificou aqueles que, apesar de todos os riscos, assumiram a fraternidade e a solidariedade como sentido maior de suas vidas. Não devemos perder tempo e energias procurando responsáveis por nosso país ainda ser o mais injusto do mundo. O Estado brasileiro tem recursos suficientes (renda e patrimônio) para oferecer uma vida digna para todos. Nós, da privilegiada elite brasileira e que amamos nosso país, temos o poder, a responsabilidade e o compromisso ético de pôr o desenvolvimento a serviço da derrubada do grande muro da vergonha nacional: o muro que separa os poucos privilegiados e poderosos dos muitos pobres, carentes e sofridos brasileiros. Com este foco, foi lançado, no último Fórum Social Mundial, por membros da sociedade civil, o movimento ABCD - Ação Brasileira de Combate à Desigualdade. Está em nossas mãos a possibilidade de iniciar a segunda abolição no Brasil, a abolição da injustiça social.