Título: A independência do Banco Central
Autor: Carvalho , Ney
Fonte: Valor Econômico, 19/06/2009, Opinião, p. A12

A sociedade brasileira não se dá conta da transcendental importância da autonomia do Banco Central. Cogita-se, normalmente, que esse órgão é parte do Poder Executivo. E, portanto, está subordinado ao arbítrio representado pela capacidade do governo de nomear e demitir dirigentes, tanto como em qualquer outra estatal. Inexiste raciocínio mais indigente.

O equilíbrio do Estado moderno foi delineado por Montesquieu, no "Espírito das Leis", obra magna publicada em 1748. Nela está definida a independência dos poderes estatais: Legislativo, Executivo e Judiciário. À época, as preocupações dos iluministas diziam respeito ao direito, às leis, guerras, religiões, formas de governo e liberdade. A economia não fazia parte dessas cogitações, a política dominava o cenário. E a emissão de moeda, considerada prerrogativa natural de governantes, relegada a plano secundário.

A Revolução Industrial ainda vacilava passos infantis. O primeiro tratado sobre economia seria "A Riqueza das Nações", de Adam Smith, editado em 1776, um quarto de século após as concepções de Montesquieu que faleceria, sem tê-lo lido, em 1755. Essa defasagem temporal, o desconhecimento da economia como fator emergente e a desconsideração da moeda, então ainda emitida por pequenos Estados feudais, como elemento de unidade nacional, são, sem dúvida, as razões da inexistência de um quarto pilar na arquitetura política de Montesquieu: O Poder Monetário.

Gradualmente, as principais nações do hemisfério norte construíram esse novo poder em suas estruturas nacionais, ao longo dos séculos seguintes. Foi a cristalização da liberdade fornecida aos bancos centrais, mediante a outorga de mandatos fixos a seus dirigentes. Assim, tais casas se tornaram independentes dos demais poderes, sobretudo dos governos de ocasião.

A importância da autonomia do emissor de moeda deriva de fator quase sempre despercebido. A moeda é o único traço de união material entre os habitantes de um país. Do Oiapoque ao Chuí, apesar de suas diversidades, todos carregam no bolso a mesma unidade monetária. E a estabilidade desse padrão é fundamental para manter progresso, paz e coesão nacionais. A moeda não pode ser desvalorizada ao sabor de eventuais oscilações políticas no comando do Executivo. O Poder Monetário, diga-se o Banco Central independente, é parte das instituições pétreas de um Estado democrático de direito, tanto quanto o Legislativo e o Judiciário.

Esta foi a concepção original do Banco Central do Brasil quando criado pela Lei 4595, em 1964. Ninguém se lembra, mas o presidente e diretores tinham mandatos de sete anos, justamente para ultrapassar os quatro da temporada do primeiro mandatário. Na "campanha presidencial" para a eleição indireta de Costa e Silva, em 1967, o "candidato" manteve "escritório eleitoral" em Copacabana, onde recebia visitantes e assistia conferências, para melhor se instruir sobre o país. Numa delas, o então presidente do Banco Central, Dênio Nogueira, fez palestra sobre a casa que dirigia. E ressaltou os mandatos fixos e a autonomia da entidade com relação ao governo. Num regime fortemente autoritário, saiu de lá defenestrado e a independência do Banco Central também jogada pela janela.

A partir de então, o Banco Central foi submetido à total subordinação ao Poder Executivo, representado pelo ministro da Fazenda que indicava seus presidentes. A emissão de moeda passou a ser controlada pela área gastadora do Estado, o governo federal. O fim da independência foi causa determinante das tristes quadras inflacionárias de 1970 e 1980, denominadas décadas perdidas.

Compreendendo a importância de autonomia da autoridade monetária, após o Plano Real, de 1994, o presidente Fernando Henrique Cardoso outorgou vasta independência operacional ao Banco Central. À exceção da queda de Gustavo Franco, o órgão permaneceu, durante seus mandatos, apartado de injunções políticas do Poder Executivo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com sua notável capacidade intuitiva, manteve as linhas mestras ditadas pelo antecessor, permanecendo o Banco Central infenso à questiúnculas políticas e distribuição fisiológica de poder. Apesar de sempre ameaçado, Lula resistiu a palpites de facções de seu partido, pressões e ingerências de todo tipo. Os resultados desses quinze anos são extremamente positivos e animadores. Mas a autonomia do Banco Central é apenas concedida de fato pelo príncipe, não alicerçada em princípios de direito, regime legal específico ou inscrita na Constituição.

Nos termos atuais, nada impede que a ascensão à Presidência da República de uma personalidade autoritária jogue por terra o edifício já construído. O Brasil está repleto de políticos de projeção nacional que se julgam oniscientes conhecedores de economia e se sentem capazes de dirigi-la conforme desígnios próprios. Uma simples penada é capaz de destruir, em segundos, a autonomia do Banco Central, tanto quanto o fez Costa e Silva, por influência de seus acólitos, nos idos de 1967, em plena ditadura militar.

É fundamental não esquecer que o Brasil viveu dois períodos de grande sucesso no combate à inflação. O primeiro entre 1964 e 1967, quando foi vencida a espiral deixada pelo governo João Goulart. O segundo, a partir do Plano Real, de 1994. Não por acaso as duas etapas em que o Banco Central teve sua autonomia preservada. Seja de direito, na fase anterior ao desmando de Costa e Silva, seja concedida de fato, nos governos de FHC e Lula.

No Brasil há agências federais para regular quase todas as atividades econômicas. Na maioria as diretorias têm mandatos fixos e alternados, para lhes garantir autonomia. Não faz qualquer sentido, que a principal delas, justamente a fiadora da estabilidade da moeda, o Banco Central, não ostente tais características. Não há independência possível sob o fio da navalha de uma demissão ad nutum.

Do ponto de vista de consolidação da democracia é fundamental blindar juridicamente a autonomia e independência do BC. O presidente Lula se revelaria um estadista, digno do termo, se bancasse, com a força de seu prestígio, mudança constitucional que transformasse o Banco Central no quarto e imutável poder da República. Seria seu maior legado ao Brasil.

Ney Carvalho foi corretor de Bolsa. É historiador e escritor E-mail: artehist@terra.com.br