Título: Dois anos de política social
Autor: Marcelo Côrtes Neri
Fonte: Valor Econômico, 04/01/2005, Opinião, p. A9

A intenção aqui é fazer sugestões construtivas à política social brasileira. A crítica de muitos se refere ao seu caráter assistencial. A única inovação concreta na tentativa de se ensinar a pescar seria a criação da secretaria da pesca, o resto seriam ações compensatórias. Na minha opinião, para justificar a adoção de novas políticas de transferência de renda basta que o seu efeito redutor de miséria apresente uma relação custo-benefício melhor que a de outras alternativas disponíveis, sejam elas estruturais, sejam compensatórias. No caso brasileiro, o alto nível de desigualdade , aliado à renda per capita relativamente alta, cria condições propícias para o desenho e a implementação de políticas redistributivas, desde que aplicadas de maneira eficiente. O grande mérito da política social de Lula foi levar o combate à miséria a um nível de conscientização nunca antes observado. Lula não pode ser acusado nem de oportunista, nem de inerte, pois levantou a bandeira contra a miséria no discurso da vitória. O projeto Fome Zero foi a prioridade inicial do presidente Lula, como fora o Plano Real para seu antecessor. Lula quer dar um choque na miséria, comparável ao dado pelo Plano Real na inflação há quase uma década. O Fome Zero possui uma grande qualidade e um grande defeito. A qualidade é a capacidade de mobilizar a sociedade, atributo herdado das ações pretéritas de Josué de Castro, autor de "Geografia da Fome", nos anos 40, e de Betinho, criador da Ação da Cidadania contra a Miséria, a Fome e pela Vida. O combate à miséria habita hoje corações e mentes de brasileiros e estrangeiros. Outro feito de Lula. Se atribuirmos um órgão do corpo ao Fome Zero, ele é o coração da política social brasileira. Uma campanha social que conta com Duda Mendonça como estrategista de marketing, e o presidente Lula como principal avalista, tem tudo para colocar 180 milhões de brasileiros em ação. Agora, boas intenções e propaganda não bastam. Até porque o slogan Fome Zero não é original, vide o Tolerância Zero, de Nova York. Mais do que operacionais, os problemas do programa foram de concepção. Buscou-se um combate literal à fome, cerceando a liberdade do pobre de escolher o que podia, ou não, consumir. A justificativa era aumentar a produção agrícola e a capacidade de geração de renda local. Ao tentar restringir a liberdade de escolha do beneficiário a produtos alimentares, criaria-se uma espécie de reserva de mercado, tentando garantir o escoamento da produção local aos produtores agrícolas. Na tentativa de chupar cana e assobiar ao mesmo tempo acaba-se não fazendo bem nem uma coisa, nem outra.

A contrapartida de freqüência escolar do Bolsa Família é um subsídio direto à educação, como programas de merenda escolar e livros didáticos

Outro exemplo dessa miopia em relação à fome foi a criação de um imposto incidente sobre as contas de restaurante, lançado na versão zero do Fome Zero. Essa fonte de financiamento teria a capacidade de financiar 0,13% do custo da empreitada, além de ser uma distorção. O fato de o programa ser voltado à segurança alimentar não implica que devemos arrecadar recursos na digestão das pessoas, ou forçar os pobres a comer. O Fome Zero incorreu no pecado original: o de reinventar a roda. A ânsia de mudar, talvez em função da manutenção da política econômica do governo anterior, desprezou avanços na estrutura de combate à pobreza feitos nos anos anteriores, como a chamada rede de proteção social. O Bolsa Família, concebido a partir das críticas feitas ao Fome Zero e gestado nos nove primeiros meses de 2003, revela alto poder de reação e transformação do governo. A unificação dos programas sociais representa uma tentativa de retomar o uso de tecnologias sociais de ponta, dar maior consistência e sistematicidade às ações do governo federal. A criação do Bolsa Família, composto de diferentes programas de transferência de renda, busca uma convergência de resultados, assim como a formação do cadastro social único, uma espécie de censo operacional das políticas sociais. O Bolsa Família também tem sido objeto de críticas. Segundo algumas reportagens, elementos centrais do programa, como focalização nos mais pobres e contrapartidas sociais, como aquelas ligadas à vacinação e a freqüência escolar, não estariam sendo exigidas. Em outras, palavras, os gestores não estariam fazendo o seu dever de casa. Na prática, é impossível confirmar a validade de tais críticas sem uma avaliação sistemática e pública de desempenho do programa, que, é verdade, estariam previstas no seu desenho. Já quanto as críticas de caráter conceitual, alguns têm se valido da divulgação dos números de desnutrição adulta brasileira como munição contra o Bolsa Família. Essa crítica está fora de timing, pois o Bolsa Família, ao contrário do Fome Zero, não é um programa de segurança alimentar. Outros argumentam, com alguma propriedade, que o melhor investimento social do Estado é a educação. Mas a contrapartida de freqüência escolar do Bolsa Família representa um subsídio direto à educação, tanto quanto os programas de merenda escolar e do livro didático o são. A volta da concessão e fiscalização do lado bolsa-escola do programa ao domínio do Ministério da Educação, que é quem tem vocação para isso, seria um avanço operacional e contábil. O Fome Zero representa a tentativa do Estado de mobilizar a sociedade, aí incluindo atores estrangeiros. O Bolsa Família vem organizar o lugar do Estado nas transferências de renda, realizando upgrades e inovações nas ações do governo anterior. O desenho do programa é moderno, seguindo as melhores práticas compensatórias em vigor em vários países. Na prática, o governo Lula tem demonstrado velocidade e capacidade de reação às críticas. Como o Bolsa Família não tem as salvaguardas constitucionais de outros programas, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a Aposentadoria Rural, acaba sendo alvo prioritário daqueles que querem dar outros fins para os recursos alocados na área social. Por outro lado, guarda a flexibilidade necessária para constante aprimoramento a partir de avaliações e críticas.