Título: "Prefeitos precisam negociar para enfrentar desafios"
Autor: Heloisa Magalhães
Fonte: Valor Econômico, 04/01/2005, Especial, p. A10
Entrevista - Para economista, é preciso uma agenda em que seja pensado o futuro das grandes cidades
Os economistas André Urani e o José Guilherme Reis reuniram um grupo de 25 especialistas e prepararam um documento batizado de "Desenvolvimento com Justiça Social: uma Agenda para os Municípios". O estudo traz propostas nas áreas de educação, saúde, finanças, regularização fundiária, saneamento básico, juventude e desenvolvimento local e é voltado para apoiar os novos prefeitos e vereadores na formulação de políticas públicas consistentes que levem a uma efetiva melhoria da qualidade de vida de suas populações.
Nesta entrevista ao Valor, Urani fala que os novos prefeitos das regiões metropolitanas não devem vestir "uma roupa de super homem e achar que vão resolver tudo em quatro anos". Defende que busquem uma agenda em que seja pensado o futuro das grandes cidades com expectativa de retorno a longo prazo. Segundo o economista, o eixo Rio-São Paulo, onde a situação é mais crítica, convive com modelo de desenvolvimento ultrapassado, o que acabou acentuando as desigualdades e o aumento da pobreza.
O índice Gini, indicador de desigualdade, que varia de 0 e 1, vem piorando nas duas regiões metropolitanas. No Rio, em 1992 era de 0,55 e em 2003 passou para 0,57. Em São Paulo aumentou de 0,53 para 0,57. Já no conjunto das regiões metropolitanas manteve-se em 0,58.
Nesta entrevista, Urani defende que a solução passa por uma ação de longo prazo, unindo várias esferas de governo, sociedade civil e e empresas privadas. O economista é professor adjunto do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor executivo do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets). Já Reis, que também foi do instituto, está agora no Banco Mundial.
Abaixo os principais pontos da entrevista:
Valor: Por que as grandes cidades brasileiras estão reagindo mais lentamente do que o resto do país na melhoria dos indicadores sociais?
André Urani: Há um fenômeno específico que atinge as maiores metrópoles brasileiras do Sudeste, Rio de Janeiro e São Paulo, incluindo nesse eixo Campinas e Baixada Santista. Essas áreas são o coração do modelo que o país experimentou em meados do século passado que é o modelo nacional desenvolvimentista, que hoje está totalmente ultrapassado. O Brasil tem mudado para melhor de uma maneira geral, mas neste eixo houve mais lentidão. O país sofreu transformações extraordinárias, em especial a partir do Estado Novo, experimentou mudanças dramáticas entre 1947 e 1980. O PIB foi multiplicado por 11, o PIB industrial multiplicado por 16, a população dobrou e a proporção de gente no campo e na cidade se inverteu. Todo o crescimento populacional que houve naquelas três décadas se concentrou nas grandes cidades, particularmente no Sudeste. Por maior que tivesse sido o crescimento do emprego formal, com carteira assinada nos setores modernos, na indústria, nos serviços e no próprio governo, muita gente não conseguiu objetivamente um lugar ao sol na modernidade que estava chegando ao Brasil junto com a industrialização. Na verdade aquele modelo de desenvolvimento, permitiu crescimento extraordinário da produção, mas não houve redução da pobreza. Da proporção de pobres sim, mas o número de pobres não caiu. O que aconteceu é que os pobres mudaram de endereço, saíram do campo, vieram para as grandes cidades trabalhar informalmente, como trabalhadores autônomos, empregados sem carteira assinada em pequenas empresas. Moravam mal, em favelas e barracos, mas continuavam vindo porque tinham a esperança de que ninguém seguraria esse país.
Valor: Mas o modelo se esgotou?
Urani: Aconteceu que o modelo implodiu. Era um modelo que se baseava numa associação entre o Estado nacional, extremamente centralizador e autoritário, que se metia em todos os mercados de maneira a favorecer o crescimento dos setores que eram considerados estratégicos de uma maneira ou outra. Isso gerou muitas distorções macroeconômicas, inflação e endividamento, além de sociais. A desigualdade manteve-se extremamente elevada e aproximou os ricos dos pobres. Até então o bem-estar ficava concentrado na cidade e os pobres predominantemente moravam no campo. De repente os pobres vieram viver ao lado dos ricos. As regiões metropolitanas tornaram-se caldeirões onde as pessoas podiam observar a desigualdade na janela. No Rio de Janeiro, ao atravessar a rua entre o (bairro) da Gávea e a (favela ) da Rocinha você ganha ou perde oito décadas de desenvolvimento humano. A expectativa de vida na Rocinha é 14 anos menor do que na Gávea. A taxa de desemprego é nove vezes maior. A renda familiar per capita na Gávea é 17 vezes maior.
Valor: No Rio de Janeiro isso acontece porque a favela fica dentro da cidade.
Urani: Não é só isso. Se você for a Belo Horizonte entre (o bairro da) Serra e Favela da Serra as distâncias são as mesmas observadas entre a Rocinha e a Gávea. A mesma coisa acontece em Boa Viagem e Macaxera, no Recife ou Morumbi e Paraisópolis, em São Paulo. Na verdade esse é um fenômeno metropolitano de aproximar os contrastes com todas as tensões que sugerem em termos de expectativas, de comportamento. A diferença é uma violência muito grande. Tancredo Neves tinha uma frase nos anos 80 quando perguntavam para ele por que não explodia esse caldeirão social em que o Brasil estava se transformando. Ele dizia que era por causa do crescimento e o crescimento era o verdadeiro cimento social brasileiro. Havia muita mobilidade. As pessoas achavam que ao longo do ciclo de vida poderiam evoluir e experimentar uma melhora significativa da sua qualidade de vida. E isso aconteceu para muita gente ao longo dos anos 60 a 70. O próprio Lula é um exemplo da mobilidade.
Valor: Mas o caldeirão agora está explodindo...
Não cabe de maneira alguma colocar em xeque a Lei de Responsabilidade Fiscal. É uma conquista civilizatória"
Urani: Pois é, perdemos a década de 80 tentando reeditar o modelo que tinha implodido que morreu devido ao seu próprio limite. Não foi uma morte imposta de fora, e sim devido à própria maneira que tinha se estruturado. As distorções microeconômicas acabaram resultando em desequilíbrios macroeconômicos. Perdemos a década de 80, mas a partir do fim dos anos 80 e início de década de 90 começaram a ser feitas uma série de mudanças. A economia ficou estabilizada, foi aberta, reformou-se o Estado, avançou-se numa série de mudanças na relação entre Estado e sociedade. O país se democratizou, o que é muito importante, e avançou na descentralização. Não é que o Estado tenha encolhido mas mudou de natureza. Nos últimos dez anos, a pobreza caiu, a indigência caiu, a renda aumentou, a proporção de pessoas vivendo em favelas diminuiu, a escolaridade aumentou brutalmente, a esperança de vida ao nascer aumentou. Todos indicadores de qualidade de vida apontam para melhora bastante acentuada, mesmo na renda onde avançou menos. Mesmo assim houve um aumento de cerca de 30% na renda familiar per capita no Brasil ao longo da década. Esse quadro não corresponde em nada à sensação que nós mesmos temos. O problema é que no eixo Rio-São Paulo estamos muito relutantes de virar a página, presos ao modelo de desenvolvimento do passado.
Valor: O que deu errado neste "eixo"?
Urani: A crise que atingiu as nossas regiões metropolitanas, devido à globalização de uma maneira geral, a desindustrialização, a perda de dinamismo das regiões metropolitanas. Não é uma crise puramente brasileira. O mundo todo, com a abertura das economias desvocacionou as regiões metropolitanas. Há exemplos como Milão, Londres, Paris, Nova York, Pittsburg, Detroit, Barcelona. Todas são metrópoles que cresceram em volta da industrialização. Elas todas entraram em crise no final dos anos 70 e na década de 80.
Valor: Mas buscaram novas vocações...
Urani: Sim, a diferença é que já há algum tempo essas metrópoles têm buscado soluções próprias. Houve esforço de procurar reinventar o futuro.
Valor: Como definiram qual seria o futuro?
Urani: A primeira coisa importante é saber que é um futuro que nasce de baixo para cima. Não é mais o Estado nacional que é capaz de dar a resposta. É preciso criar novas institucionalidades. As coisas chegaram a tal grau de complexidade que as instituições que temos em mãos não são capazes de dar respostas. Nós temos que ser capazes de pensar soluções conjuntas para os próximos 25 a 30 anos, que é o prazo para enfrentar os nossos principais problemas.
Valor: Quais as soluções de grandes cidades como Barcelona e Milão?
Urani: Vou dar o exemplo de Barcelona. A cidade tinha um subúrbio industrial que se transformou em verdadeiro cemitério de empresas. Galpões abandonados, valor arquitetônico próximo de zero, populações desempregadas, marginalizadas, muita violência, muita droga. Tudo aquilo que conhecemos. Nos últimos 10, 15 anos, o Brasil não se desindustrializou, pelo contrário. Produz mais bens industriais do que há 15 anos. Produz mais automóveis do que no passado, só que não é mais no ABC. Espalhou-se pela Bahia, Paraná, Rio de Janeiro. Vai chamar um fabricante de automóveis a investir no ABC, vê se ele vai querer? No caso do Rio, o cenário foi semelhante na indústria têxtil. Boa parte do subúrbio da cidade é um eixo industrial formado nos anos 40 que combinavam indústrias e vilas operárias. Hoje não tem mais. Os parques proletários incharam e se tornaram favelas e enguliram os galpões. Os que sobreviveram foram transformados em igrejas, shopping centers e muitos se favelizaram. Em Barcelona o caminho foi pensar 30 anos à frente. A prefeitura uniu-se a outros níveis de governo regionais assim como em Milão. Várias prefeituras se juntaram. A Agência de Desenvolvimento do Norte de Milão une várias cidades. Como se fosse juntar São Paulo, São Bernardo e Santo André. Com o apoio da União Européia, a eles se somaram a Oracle, a Pirelli, que hoje controla a Telecom Itália, e empresas privadas da redondeza, para definir estratégias para aquele território que estava sendo desindustrializado. No caso de Barcelona juntaram-se à Lotus, Sony e Lucent Tecnologies. Criaram agências de desenvolvimento, que são entidades privadas, de interesse público onde os poderes públicos entraram como acionista minoritários, o que foi importante para dar credibilidade e legitimidade. De maneira macro o resultado foi a transição de um modelo industrial típico de grande empresa para o modelo mais horizontal, mais baseado em pequenas e micro empresas, mais tecnologia, mais serviços, com baixa taxa de desemprego. Conseguiram fazer uma transição de um modelo para outro com taxa de desemprego abaixo de 7% apesar de toda perda de indústria que tiveram.
Valor: Mas no Brasil é diferente. Nas nossas cidades há enorme concentração humana e muitos sem formação ...
Urani: Sim, temos um déficit de preparo. Em São Paulo, quase metade dos adultos - 49,5% - em idade de trabalhar não têm o ensino fundamental completo, o equivalente a oito anos de estudo. No Rio, o percentual é de 40%. No Brasil, quase dois terços dos adultos não têm o ensino fundamental, o que significa não ter grandes chances de ter um trabalho decente. Nós temos muitas iniciativas interessantes no Rio e São Paulo de criar determinados tipos de centros voltados ao serviços, a indústria. Projeto não falta. O que falta é o processo. Falta sair da lógica dos projetos pontuais tópicos e e partir para uma lógica dos processos de formação, que são mais complexos mas com mais sustentabilidade.
Valor: Nesta linha, qual deveria ser a agenda dos novos prefeitos?
Não cabe de maneira alguma colocar em xeque a Lei de Responsabilidade Fiscal. É uma conquista civilizatória"
Urani: Não cabe de maneira alguma colocar em xeque a Lei de Responsabilidade Fiscal, como alguns vem discutindo. Lutamos muito para tê-la é uma conquista civilizatória do país. A questão é que os desafios que esses prefeitos terão de enfrentar são gigantescos. E eles têm razão de se sentirem impotentes. Os principais problemas das regiões metropolitanas são extremamente complicados e de difícil solução por prefeitos no âmbito de um mandato. A questão da desigualdade, violência, favelização, saneamento básico, informalidade, falta de emprego são problemas de caráter estrutural e só podem ser enfrentados com chance de sucesso à medida que se for capaz de alongar os horizontes que costumam cercear a imaginação e de montar cenários para uma geração. A pior atitude dos novos prefeitos será a de imaginar que são salvadores da pátria. Não podem ser fominhas. Não precisamos de chefes e sim de líderes. Não de pessoas que resolvam fazer tudo sozinhas, mas de pessoas que tenham alguma capacidade de articulação com outros níveis de governo, com a sociedade civil e a iniciativa privada, no sentido de armar as condições para que as regiões metropolitanas sejam capazes de fazer uma transição para um novo modelo de desenvolvimento que não se parece quase nada com o do passado.
Valor: Como seria esse modelo?
Urani: Não existe um modelo universal. Quando digo isso falo que não adianta copiar. Cada grande cidade, cada metrópole, cada região metropolitana tem que buscar suas próprias soluções. Aquilo que serviu em Barcelona ou em Milão é excelente para estimular a imaginação e o pensamento, mas de maneira alguma dá para imaginar que vamos poder copiar alguma coisa pronta. Temos que chamar as forças vivas da sociedade para repensar o futuro. Tem que chamar a universidade, as empresas privadas, os sindicatos. O fato de o (Geraldo) Alckmin (governador de São Paulo) chamar os prefeitos eleitos para repensar a questão metropolitana é ótimo mas não é suficiente. Não interessa o partido. O que interessa é que não vou ser capaz de resolver a questão do trabalho, do transporte do meio-ambiente, das favelas da região metropolitana de São Paulo se não juntar os prefeitos da região para pensar junto. As soluções não podem ser pontuais. Os prefeitos precisam entrar numa lógica de negociação com outros prefeitos, governos do Estado, sociedade civil e iniciativa privada.
Valor: O sr. não acha que a questão das regiões metropolitanas passa pela desconcentração da população?
Urani: Não tem como pensar em estratégicas que não sejam indutoras da desconcentração. O mercado de trabalho tem oferecido mais oportunidades fora da das grandes cidades.
Valor: As pessoas ainda migram com a sensação de que é melhor ser pobre nas grandes cidades do que nos grotões?
Urani: As grandes cidades não são capazes de oferecer alternativas boas de inserção para as pessoas com menor qualificação. É preciso ser realista. Este país está gerando muitas oportunidades fora do eixo das grandes cidades. Não falo em expulsar as pessoas de forma autoritária mas gerar incentivos para alguma desconcentração. Existe um Brasil se desenvolvendo em Santa Catarina, Goiás, Mato Grosso, sul do Maranhão, interior da Bahia. Tem que aos poucos criar informação políticas, incentivos e estratégias para desinchar as regiões metropolitanas.
Valor: O sr. vê alguma estratégia articulada para enfrentar a violência urbana? O governo federal, com discurso focado no social, passa a sensação de ter se ausentado do problema.
Urani: Não vejo muita articulação e nenhuma estratégia por parte do governo federal. O setor privado gasta muito com segurança, está fazendo um esforço grande. Mas enxugando gelo. O governo dos Estados e as prefeituras também investem, a sociedade civil faz esforço enorme, prepara diagnósticos mas falta articulação. A segurança é uma questão chave para o bem estar da sociedade. As armas que temos à disposição não são condizentes com os desafios. Temos que nos armar melhor para enfrentar nossos problemas. Os prefeitos estão desarmados.
Valor: Iniciativas como favela-bairro as escolas em tempo integral são iniciativas isoladas?
Urani: Bom projetos não faltam, o que faltam são processos. É preciso saber reinventar. Os nossos prefeitos, recém-empossados não têm o direito de se fantasiar de super-homem, venderem a ilusão que serão capazes de resolver todos os problemas por conta própria. Precisam de banho de humildade para reconhecer os limites e a necessidade de dizer: senhores vamos ser honestos se eu quiser fazer diferença vou ter de pensar além do mandato. Estou fazendo alguma coisa hoje cujos frutos serão colhidos pelo sucessor do meu sucessor.