Título: A contribuição indireta dos menos favorecidos :: Erito Marques de Souza Filho
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 24/06/2009, Opinião, p. A13

Na política fiscal e tributária brasileira que prevaleceu até fins de 2007, pode-se destacar o aumento não legislado do Imposto de Renda (IR) das pessoas físicas, o aumento da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e da extinta Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF). Em particular, o aumento na arrecadação da Cofins e da CPMF se traduziu em um aumento da contribuição indireta também dos indivíduos pobres, uma vez que a incidência desses tributos não recai exclusivamente sobre o empresário, pois é repassada ao consumidor.

Essa contribuição indireta da população pobre é ignorada, enquanto a sua não contribuição para o Instituto Nacional de Seguridade Social aparece como reflexo de um comportamento oportunista, quando nada mais é do que incapacidade de contribuição em razão do seu déficit agudo de renda (de acordo com os dados da Pesquisa de Orçamento Familiar - POF -, a renda média mensal de um domicílio pertencente ao primeiro décimo de renda é de R$ 71,52, para o segundo décimo esse valor é de R$ 141,74, enquanto para o último décimo R$ 3.992,37).

O debate acerca da necessidade de desvincular os benefícios previdenciários do piso do salário mínimo retoma essa questão, pois os que defendem a desvinculação julgam que a existência de benefícios não contributivos como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), ou mesmo aqueles cuja contribuição tem perfil errático - caso da aposentadoria rural - seriam desincentivos ao financiamento do sistema no longo prazo, concedidos aos pobres.

Para se estimar a magnitude da contribuição tributária indireta ao orçamento da Seguridade Social das camadas mais pobres, foi aplicada de modo linear a alíquota de 12,38% (Cofins + CPMF + CSLL) aos gastos, disponíveis na POF 2002-2003, com os atributos de água, energia elétrica, gás e alimentação dos décimos inferiores da distribuição de renda domiciliar per capita. Essa hipótese pode ser considerada conservadora, uma vez que a alíquota efetiva desses tributos é significativamente maior que a alíquota estatutária; por exemplo, Paes e Bugarin ("Parâmetros tributários da economia brasileira", Estudos Econômicos, v. 36) estimaram, em 2006, alíquotas efetivas médias de 1,31% para a CPMF. Os resultados obtidos indicam que a contribuição anual do primeiro décimo foi de cerca de R$ 2 bilhões, enquanto o segundo décimo contribuiu com pelo menos R$ 2,4 bilhões. Todos os valores aqui apresentados foram deflacionados pelo IPCA de dezembro de 2006.

Para compreender a ordem de grandeza da contribuição total de ambos os décimos, basta dizer que ela é equivalente ao gasto do governo com o BPC em 2006 e corresponde a 56,25% do total gasto pelo governo com o Programa Bolsa Família (PBF) nesse mesmo ano. Um domicílio pertencente ao primeiro décimo desembolsa anualmente, em média, cerca de R$ 423 com a Seguridade Social, o que corresponde à cerca de R$ 35,27 por mês, enquanto um domicílio que pertença ao segundo décimo gasta cerca de R$ 507,14 reais por ano, ou cerca de R$ 42,26 por mês. Dividindo-se a contribuição mensal domiciliar por décimo pelo seu respectivo tamanho familiar, depreende-se que a contribuição mensal per capita do primeiro décimo é de R$ 6,72 enquanto é de R$ 9,31 para o segundo décimo.

Além disso, a contribuição de um indivíduo pertencente ao primeiro décimo corresponde a 9,40% de sua renda; para o segundo décimo, o valor é de 6,57%. Os valores dessa contribuição para os demais décimos seguem uma tendência decrescente, alcançando o valor 1,09% para o último décimo. Portanto, os pobres destinam proporcionalmente maior fatia de sua renda para a contribuição da Seguridade Social do que os ricos!

Para avaliar a magnitude da contribuição mensal feita pelas camadas mais pobres ao financiamento da proteção social no longo prazo, foi feita uma simulação em um plano de previdência complementar. Considerando-se uma situação de baixa taxa de rentabilidade, os resultados obtidos indicam que um domicílio que contribuísse mensalmente na modalidade Vida Gerador de Benefício Livre Júnior (VGBLJ) com R$ 35,27, a partir dos 10 anos de idade, receberia uma renda vitalícia de R$ 299,71 após 50 anos de contribuição e teria provisão acumulada de R$ 59.926,29. Por outro lado, um domicílio que contribuísse mensalmente, a partir dos 10 anos de idade, na modalidade VGBLJ com R$ 42,26, receberia uma renda vitalícia de R$ 359,50 após 50 anos de contribuição e teria um pecúlio acumulado de cerca de R$ 71.882,53. Os valores desses benefícios vitalícios representam respectivamente, em 2006, 0,85 e 1,02 do salário mínimo vigente, que era de R$ 350. Como o tamanho médio de um domicílio pertencente ao primeiro e décimo é de 5,25, segue que cada indivíduo pertencente a esse décimo teria direito a uma renda vitalícia de R$ 57,08, o que corresponde a 16,3% do salário mínimo. Para um indivíduo pertencente ao segundo décimo, esse valor é de R$ 79,18, correspondendo a 22,6% do salário mínimo.

Quando se dá um benefício a um cidadão, parte desse benefício retorna aos cofres públicos por meio da tributação indireta e parte desse benefício é um direito legítimo desse cidadão em função de sua contribuição indireta ao longo da vida, ainda que muitas das vezes ele não saiba. Paradoxalmente, o debate contemporâneo parece advogar a necessidade de uma lógica atuarial, na qual todos devem contribuir (diretamente) para ter direito ao benefício. Entretanto, esta argumentação deve ser avaliada com cuidado, pois a contribuição indireta das camadas menos favorecidas é significativa e, assim sendo, qualquer reforma que se proponha no sistema tributário brasileiro e na Seguridade Social deve levar em consideração a possibilidade de compensação dos pobres ante essa pesada carga tributária indireta que os oneram. Dentre as possíveis alternativas, pode-se citar os programas de renda mínima e a desoneração do consumo de bens essenciais para as camadas mais pobres, tais como a cesta básica.