Título: Regime dos aiatolás vive o seu maior
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 25/06/2009, Opinião, p. A14

Não há a menor dúvida agora de que as eleições de 12 de junho no Irã foram fraudadas em grande escala. O Conselho de Guardiães, que aprova candidatos e ratifica o resultado do pleito, oficialmente informou que em 50 cidades, de uma amostra aleatória de 3 milhões de votos, houve mais eleitores que residentes. Não é preciso muita sagacidade para colocar sob suspeita todas as urnas, algo que o Conselho se recusou a fazer, com a benção do líder supremo Ali Khamenei, o primeiro a sagrar Mahmoud Ahmadinejad como vencedor, com 63% dos votos. A revolta tem motivos justos e a Guarda Revolucionária e seus paramilitares mataram 17 pessoas desde o fim da eleição, ao enfrentarem as maiores manifestações desde que a Revolução Islâmica foi vitoriosa, há três décadas.

Diante de feroz repressão, há pouca coisa que a oposição a Ahmadinejad possa fazer porque um desfecho impulsionado pelos protestos populares não moverá um poder que reside acima e além dos votos. Ele está circunscrito ao líder Khamenei, que pode ser expelido se esse for o desejo do Conselho dos Especialistas, liderado por Ali Akbar Rafsanjani. Khamenei tem muito poder. Indica o comandante das Forças Armadas e s seis teólogos entre 12 membros do Conselho dos Guardiães, que vigia e sanciona ou não as decisões do Parlamento - os outros seis são escolhidos pelo chefe do Judiciário, também selecionado pelo líder supremo. Não há instâncias que resolvam o conflito entre o desejo do líder supremo, que agora apoia uma fraude, e o dos eleitores descontentes. A chance das manifestações populares prosperarem e conseguirem seus objetivos depende de um racha na cúpula do governo, em uma disputa em que a religião, na verdade, cede o lugar ao poder temporal e clérigos enfrentam clérigos.

Há sinais cada vez mais claros de que isso está acontecendo. O próprio Conselho dos Guardiães propôs a Khamenei que o prazo para recebimento de queixas eleitorais dos candidatos fosse estendido por mais cinco dias, o que é incompreensível à luz do próprio veredito prévio do Conselho de que as eleições não serão anuladas e de que não haverá revisão total dos votos. Outro sintoma de acirramento das lutas nas mais altas esferas do governo foi a prisão da filha e três parentes de Rafsanjani, que estaria, por seu lado, buscando o apoio do Conselho de especialistas para destituir Khamenei.

Sem que essas brechas sejam ampliadas, não há saída à vista para o descontentamento dos iranianos. Uma insurreição aberta é improvável porque não é a religião que está em questão, como prova o verde, a cor do Islã, que decora as manifestações da oposição. Da mesma forma, não será na figura de Mir-Houssein Mousavi, que obteve 33% dos votos e maioria em Teerã, que os eleitores encontrarão um líder disposto a ir até as últimas consequências. Ele é um revolucionário islâmico de primeira hora e, como premiê (cargo que foi extinto), colocou a dureza doutrinária à frente dos demais direitos dos iranianos. É um inimigo histórico de Khamenei, mas vai se recolher ao silêncio prudente se a rixa na cúpula do governo cessar e se voltar inequivocamente contra ele.

A irrupção de gigantescas manifestações de massa foi o resultado de mais um dos passos em falso dados por Ahmadinejad e pelos militares que o apoiam, que ganharam mais força em seu governo. Era inevitável que o delicado estado da economia fosse atribuído a sua desastrada administração. O presidente iraniano conseguiu não apenas ser um fator estridentemente divisivo na política doméstica, como conseguiu se elevar às alturas de um criador de encrencas internacional. Mousavi tinha algumas chances de ganhar a eleição sem ameaçar o regime dos aiatolás, com um programa que permitiria um pouco mais de liberdade a opiniões divergentes e, talvez, uma gestão mais competente da economia. A rigor, Mousavi sequer chega a ser um opositor, e sim um conservador moderado, cujas ideias atuais não são de fato bem conhecidas.

A fraude nas eleições criou uma crise no centro do regime islâmico, que terá de se acomodar pelo acordo entre facções - o desenlace mais provável - ou pela repressão sanguinária, cujos primeiros sinais apareceram após o pavoroso resultado das urnas.