Título: Montadoras sobrevivem com ajuda estatal
Autor: Reed, John
Fonte: Valor Econômico, 26/06/2009, Empresas, p. B8

Figueruelas voltou a ter vida. A fábrica da General Motors no norte da Espanha está produzindo quase o mesmo número de carros que produzia antes do tombo da indústria automobilística no ano passado. O super-mini Opel Corsa que ela fabrica está tendo grande procura por causa dos incentivos estatais aos consumidores, para que eles troquem seus carros velhos por modelos novos na Alemanha, França, Itália e - desde o mês passado - Reino Unido.

O preço baixo significa que este carro e pequenos modelos concorrentes como o Fiat Panda e o Renault Clio estão sendo vendidos rapidamente entre os motoristas com poucos recursos que tendem a ter carteiras de habilitação a tempo suficiente para se qualificarem para esses esquemas. Desde que o governo alemão lançou seu bônus de ¿ 2,5 mil por carro em janeiro, a produção mensal quase triplicou na fábrica de Figueruelas, de 12 mil para 35 mil unidades.

O próprio futuro da Opel também parece muito mais seguro agora do que na virada do ano, com a ajuda do governo alemão. No mês passado, enquanto a GM se preparava para pedir concordata nos Estados Unidos, o governo de Angela Merkel - preocupado com o colapso de uma grande empresa alemã em um ano eleitoral - entrou em ação com empréstimos-ponte de ¿ 1,5 bilhão para resgatar a Opel.

Para todos que vêm acompanhando o quase colapso do setor nos últimos meses, sua saída de seu "annus horribilis" parece uma coisa surreal. O aperto de crédito atingiu primeiro, e mais duramente, as montadoras entre todos os setores não-financeiros, derrubando as vendas em 25% na Europa no fim do ano passado. Nos EUA, as vendas do setor caíram de uma taxa anual pré-crise de 16 milhões de unidades para apenas 10 milhões - um número tão pequeno que a China por pouco não roubou dos EUA o posto de maior mercado automobilístico do mundo.

Em dezembro, quando as fábricas começaram a fechar para as festas de fim de ano, Sergio Marchionne, diretor-presidente da Fiat, previu uma sacudida no setor que em dois anos deixaria apenas sete grandes montadoras de pé. Em fevereiro, Dieter Zetsche, presidente da Daimler, previa uma "guerra darwiniana".

Mas em vez da seleção natural, uma outra coisa aconteceu: governos de todas as partes do mundo, do Canadá ao Brasil, Rússia e Coreia do Sul, entraram com volumes prodigiosos de dinheiro para manter as fábricas abertas e as linhas de montagem em funcionamento.

No total, as montadoras se beneficiaram de mais de US$ 100 bilhões em ajudas estatais diretas ou indiretas, como os esquemas de incentivo à troca, desde o colapso das vendas mundiais em outubro - em termos nominais, é a maior intervenção de curto prazo da história da indústria.

Todo esse dinheiro vem preservando empregos no setor automobilístico, ainda o eixo de muitas economias industrializadas. Mas o dinheiro também vem impedindo uma reorganização necessária do setor, que há muito tempo possui muitos produtores. Consultores da PwC estimam que o setor tem capacidade para produzir 86 milhões de unidades este ano, quase um recorde - e 31 milhões a mais que os 55 milhões de veículos que vai vender.

"O que parecia ser uma oportunidade única de resolver o grande problema do excesso de capacidade do setor, foi perdida", afirma Michael Tyndall, analista da Nomura. Na Europa, nenhuma fábrica foi fechada permanentemente por causa dos socorros financeiros. A GM e a Chrysler, duas das montadoras que estavam mais vulneráveis quando a crise explodiu, pediram concordata - mas tiveram sua sobrevivência garantida por cerca de US$ 60 bilhões concedidos pela administração do presidente americano Barack Obama. A BMW e a Daimler estão entre as montadoras que discutem a conciliação de custos em áreas como compras e pesquisa e desenvolvimento, mas até agora só houve apenas uma fusão real - a parceria entre a Fiat e a Chrysler, fechada este mês. Mas Marchionne viu frustrada sua proposta de fundir as duas montadoras com a Opel, Saab e GM Latin America para criar uma companhia tão grande quanto a Volkswagen.

"O formato do setor parece o mesmo, exceto que os governos injetaram muito dinheiro nele e impediram uma seleção darwiniana", diz Max Warburton, analista da Sanford Bernstein. "Isso é um bom lembrete do que esse setor é: um esquema de criação de empregos apoiado pelo governo".

Observadores de longa data do setor observam que ele nunca operou pelos princípios puros do livre mercado. Os governos sempre interferem em tempos difíceis. A condição de muitas montadoras de campeãs nacionais é reforçada pelo controle familiar (verdadeiras dinastias) em metade das grandes produtoras, e que sempre favorecem a continuidade e o controle em detrimento do patrimônio dos acionistas. Essas famílias e os governos representam um grande obstáculo à consolidação.

Nesta crise, assim como nas anteriores, as montadoras criaram e venceram usando argumentos de que merecem tratamento especial, por serem os maiores empregadores e exportadores de seus países. Depois que o mercado de crédito fechou e as montadoras correram para Washington e Bruxelas com o chapéu na mão, em busca de ajuda emergencial no fim do ano passado, elas lembraram aos formuladores de políticas que o setor possui um dos maiores efeitos "multiplicadores": para cada emprego criado ou perdido, cerca de seis a oito posições são criadas ou perdidas na cadeia de fornecimento.

Na França, o governo de Nicolas Sakozy pediu explicitamente à Peugeot e à Renault que preservem empregos e continuem abrindo fábricas. Este foi o preço de um socorro de ¿ 6 bilhões concedido em fevereiro. As duas montadoras estão perdendo dinheiro e alguns participantes do setor acreditam que elas deverão se fundir. Mas Sarkozy exigiu um compromisso de que elas farão "tudo para evitar demissões compulsórias".

O governo da Alemanha também está fazendo da preservação de empregos sua prioridade nas negociações da GM para a venda de uma participação de controle na Opel para o consórcio liderado pela Magna International do Canadá. Muitos analistas gostaram do plano de fusão da Fiat. Mas Marchionne pode ter errado em sua política ao ser franco demais em relação à perda de empregos - de 8.000 a 9.000, além do possível fechamento de uma fábrica de motores em Kaiserslantern, no sudoeste da Alemanha.

No fim, sindicatos e primeiros-ministros dos países onde a Opel possui fábricas opuseram-se à proposta da Fiat, assim como a maioria dos membros do gabinete de Angela Markel. A GM, que apesar de na época estar às vésperas de um pedido de concordata, ganhou uma posição decisória no negócio, escolhendo também a Magna, em parte porque não queria vender suas operações latino-americanas para a italiana Fiat.

"Por causa da intervenção do governo, não veremos o mesmo nível de racionalização que as forças puras do mercado poderiam ter motivado", diz Paul McCarthy, diretor da prática da estratégias automotivas da PwC. "No longo prazo, vamos pagar por isso", completou.

Por outro lado, a administração Obama vem tentando conseguir uma reestruturação dolorosa como preço de seu socorro sem precedentes a Detroit. Sob pressão de sua força-tarefa para o setor automobilístico, que fez a companhia rever duas vezes seu plano de reestruturação, a GM vem acelerando o enxugamento de suas operações. A montadora está desativando quatro marcas, fechando 14 fábricas até 2012 e demitindo cerca de 50 mil somente neste ano. A força-tarefa também teve um grande papel na aliança entre a Chrysler e a Fiat.

A tolerância dos EUA pela perda de empregos e fechamento de fábricas sempre foi maior que a da Europa. Mesmo antes da atual crise, GM, Ford e Chrysler estavam eliminando dezenas de milhares de empregos. Ao delinear a decisão de seu governo de forçar a GM a pedir concordata, no mês passado, Obama disse que o governo "não quer controlar a GM" e prometeu manter o Estado fora da administração diária, embora vá controlar 60% da companhia, e o Canadá 12%, quando ela sair da concordata.

Mas críticos do governo já alertam para o surgimento inexorável da "Government Motors". Eles afirmam que Washington não conseguirá resistir à tentação de "meter o nariz" em decisões sobre fábricas e modelos, ao custo potencialmente elevado de prejudicar a eficiência do setor.

Em uma iniciativa vista por cínicos como um sinal do que está por vir, a GM concordou este mês em adiar o lançamento de um centro de distribuição de autopeças em Massachusetts por pelo menos 14 meses, depois que o seu diretor-presidente, Fritz Henderson, encontrou-se com Barney Frank, o congressista Democrata por aquele estado, que preside o poderoso comitê de serviços financeiros da Câmara dos Representantes. "Se isso não é um caso universal de política se transformando em intromissão, então o que é?", escreveu Daniel Howes, um colunista do jornal "Detroit News".

Mais recentemente, a GM começou a negociar com o governo e três estados americanos a construção de uma nova fábrica de carros pequenos depois que começaram a surgir rumores de que a companhia pretendia fabricar esses automóveis mais baratos na China, o que provocou barulho no sindicato United Auto Workers (UAW), que terá uma participação de 17,5% da GM quando ela sair da concordata.

A intervenção do governo americano na indústria automobilística também poderá ter outros custos, alertam os críticos. Muitos afirmam que o pulso forte de Obama sobre os relutantes credores securitizados - que ele chamou de "especuladores" em abril - foi um golpe nos direitos dos credores e, com isso, ao estado de direito na economia de mercado.

A disposição da Ford de sobreviver sem a ajuda federal, embora boa para sua imagem no curto prazo, poderá ter custos no longo prazo se a GM e a Chrysler emergirem como concorrentes mais fortes com a ajuda de Washington.

John Fleming, presidente da grande operação europeia da Ford, queixou-se no mês passado que os socorros à Opel, Peugeot e Renault estão virando o jogo a favor de seus concorrentes. Como empréstimos como esses feitos pelo governo francês provocam tensões dentro da União Europeia, ele pediu a Bruxelas que seja mais rígida no policiamento de suas próprias regras sobre a ajuda estatal.

Os analistas do setor alertam que ao fazer os consumidores trocarem seus carros de uma forma artificial, os incentivos poderão provocar uma "ressaca" no mercado em 2010. Algumas montadoras, como a Toyota, por exemplo, já estão pedindo que essas medidas sejam estendidas para o próximo ano.

"O abrandamento do golpe pela intervenção do governo nos fará passar por uma reestruturação por um período de tempo maior", diz McCarthy da PwC. "O que poderia acontecer em dois anos vai acontecer em dez. Não estaremos melhores daqui um ano", afirma o especialista.

Os incentivos vêm aumentando a demanda, mas também estão criando um efeito colateral: a aceleração da mudança para os carros menores. Assim, os esquemas estão sendo criticados por alguns fabricantes de carros de luxo, que afirmam que eles estão desviando o mercado em direção aos seis concorrentes menores e provocando uma queda geral dos preços.

"Estamos definitivamente vendo uma mudança no nível dos showrooms, no tipo de veículos que as pessoas vão comprar", diz Mark Fulthorpe, da consultoria CSM. Os incentivos variam de país para país. A França dá aos compradores de carros com níveis baixos de emissão de carbono, um bônus de até ¿ 5 mil (US$ 6,9 mil); o incentivo de 2.000 libras (US$ 3.260) no Reino Unido não tem exigências ecológicas, refletindo um desejo de não prejudicar companhias locais como a Jaguar, Aston Martin e Bentley. O plano da Alemanha vem beneficiando as marcas domésticas Volks e Opel e incentivando montadoras estrangeiras como a Fiat, Peugeot, Citroën e Renault. Mas ele tem ajudado pouco duas das marcas alemãs mais conhecidas: a BMW e a Mercedes-Benz.

As vendas de modelos menores também estão sendo ajudadas pelo fato de que os donos de carros mais antigos são sempre os que estão com os orçamentos mais apertados. Quando trocam seus carros, há uma probabilidade maior de eles comprarem os carros mais baratos, que carregam os maiores descontos.

Analistas e alguns executivos do setor alertam que os benefícios proporcionados pelos incentivos serão limitados, prevendo uma queda nas vendas quando os esquemas terminarem. (Tradução de Mário Zamarian)