Título: Pobreza americana
Autor: Niero, Nelson
Fonte: Valor Econômico, 26/06/2009, Eu & Investimento, p. D1

As empresas e bancos americanos com ações em bolsa perderam US$ 750 bilhões em patrimônio líquido entre 2007 e 2008, período em que se instalou o que ficou conhecida como a maior crise do capitalismo desde 1929. O lucro líquido no período caiu 70%, ou cerca de US$ 550 bilhões, enquanto o valor de mercado caiu 40%.

Apenas para se ter ideia do tamanho do estrago, a perda patrimonial é equivalente ao valor do primeiro pacote de ajuda do governo americano para salvar o mercado financeiro da ruína - ou algo como o dobro do patrimônio em dólares (e cerca de 70% do valor de mercado) das 350 companhias abertas brasileiras com ações negociadas na Bovespa no começo de junho.

O levantamento feito pelo Valor com o banco de dados da consultoria Economática e os sites das empresas tem como base cerca de 1,2 mil empresas que tinham seus papéis listados nas bolsas americanas em maio deste ano. A amostra, em valores nominais, retrocede até 1999 e tira uma fotografia da chamada "Corporate America" entre a bolha da internet, os escândalos contábeis e a atual crise de crédito.

Os dados mostram, por exemplo, que a relação entre patrimônio e lucro líquido - conhecida como rentabilidade patrimonial, o retorno que o acionista tem pelo capital investido - caiu para 4% em 2008, de 12% em 2007, só acima dos 3% de 2002, o ano em que foi aprovada a lei Sarbanes-Oxley, em reação às fraudes que levaram à quebra de Enron e WorldCom, que sacudiram o mercado americano.

O patrimônio líquido é a diferença entre os bens de uma empresa e suas dívidas. É a medida contábil, ou seja, mais conservadora, do que restaria para os acionistas se a companhia fosse liquidada naquele momento. Basicamente, a conta (que fica no passivo do balanço patrimonial) é formada pelo capital colocado pelos acionistas e os resultados acumulados na operação.

Apesar de soar ultrapassado em tempos de supervalorização do caixa e de lucros-antes-de-quase-tudo, o patrimônio ainda é uma referência segura dos recursos que sobraram para os sócios depois da farra do crédito.

No fim de 2008, o patrimônio líquido das companhias era de US$ 5,3 trilhões, uma queda de US$ 750 bilhões em relação aos US$ 6,0 trilhões da mesma base de empresas no ano anterior. Mesmo quando se corrige a amostra pela inflação do período, 2007 mantém-se como o ano em que as empresas acumularam o maior patrimônio do decênio. A queda do ano passado levou a reserva das companhias para valores equivalentes aos de 2004.

Aquele ano, quando ainda estava fresca a memória do estouro da bolha da internet e dos escândalos de Enron e WorldCom, foi de certa forma um marco para as novas tecnologias financeiras que os bancos vinham desenvolvendo desde a década de 90. Em dezembro de 2003, como lembram os repórteres Alan e Ian Katz, da Bloomberg, o Comitê de Padrões de Contabilidade Financeira (Fasb) dos EUA, deu aos bancos mais flexibilidade para manter fora dos balanços os "veículos de investimento" que eles administravam. Em abril do ano seguinte, a Comissão de Valores Mobiliários daquele país (SEC), órgão fiscalizador do mercado de capitais americano, permitiu às grandes corretoras, entre outras coisas, uma redução de até 30% nas reservas para bancar possíveis prejuízos e, consequentemente, aumentou o espaço para a "alavancagem" - a relação entre empréstimos e o capital da corretora. Estava aberta a temporada dos títulos lastreados por hipotecas e outros pacotes exóticos da crise do "subprime".

O estouro da bolha de crédito causou muito mais estragos que as anteriores. O lucro líquido das empresas passou de US$ 753,4 bilhões, em 2007, para US$ 202,0 bilhões, em 2008. Havia 310 empresas com prejuízo no fim de 2008 (25% da amostra), subindo para 360 em maio (30% da amostra), o que se compara a uma média de 130 nos últimos dez anos (10%). O número de empresas com patrimônio líquido negativos dobrou para 6% do total da amostra no ano passado em relação à média dos últimos anos.

A lista é liderada por um ícone da indústria americana, a General Motors. Quando entrou em concordata, em 1º de junho, a montadora acumulava um extraordinário passivo a descoberto de US$ 90,5 bilhões. Não há nada que chegue perto nos últimos anos - o segundo maior rombo é o da UAL, em 2004, de US$ 27,7 bilhões, em valores corrigidos. A controladora da empresa aérea United Airlines continua na lista deste ano, com US$ 2,6 bilhões, logo atrás de sua concorrente AMR, antiga American Airlines, com US$ 3,1 bilhões.

A agonia das montadoras e das aéreas é anterior à derrocada do sistema financeiro internacional. O problema é que o aperto de crédito piorou a situação daquelas que já estavam mal e acrescentou mais nomes à lista de indigentes.

Além dos setores aéreo e automobilístico (GM, Ford e Delphi), entre os maiores rombos há duas empresas de TV por assinatura (Cablevision e EchoStar), uma seguradora (Ambac) e os dois símbolos da crise de crédito: Fannie Mae e Freddie Mac.

Mas, ironicamente, as instituições financeiras, socorridas pelo dinheiro público, são a maioria entre os maiores patrimônios, como é o caso do JP Morgan Chase, um dos bancos que desenvolveram a tecnologia dos derivativos de crédito.

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