Título: O encontro de Obama e Medvedev
Autor: Cintra, Rodrigo
Fonte: Valor Econômico, 06/07/2009, Opinião, p. A11

A questão militar ainda é a grande responsável pela estruturação das relações internacionais

Entre hoje e quarta-feira, os presidentes Barack Obama (Estados Unidos) e Dmitri Medvedev (Rússia) irão se encontrar na Rússia na tentativa de construção de uma agenda mais propositiva entre os dois países. O sucesso do encontro pode significar o fim do pós-Guerra Fria e o início efetivo de uma nova fase nas relações internacionais.

Os dois países dividiram a liderança mundial por aproximadamente quatro décadas, no período da Guerra Fria (1947-1989), e, hoje, estão se adaptando a um mundo ainda incerto. O papel que outrora desempenharam, agora, é questionado em parte. No entanto, o maior desafio está na comunhão de interesses comuns e no estabelecimento de ações conjuntas.

Depois de um período mais turbulento nas relações, quando os ex-presidentes George W. Bush e Vladimir Putin posicionaram seus países como rivais que lutavam por um mesmo espaço de projeção geopolítica, com Obama e Medvedev as relações começaram a melhorar significativamente. Hoje há uma clara percepção de que as agendas em torno da segurança internacional, da não-proliferação de armas de destruição em massa (especialmente as atômicas), e da necessidade de cooperação para combater ameaças emergentes são importantes para ambos os países.

Em conversas anteriores entre altos representantes da política externa dos dois países já ficou claro que o grande objetivo do encontro é "reiniciar" o relacionamento, naquilo que ficou conhecido como o "reset". Em termos práticos, dentre outros tópicos, está a revisão do Start, tratado cujo nome é formado pelas iniciais em inglês de Tratado Estratégico para Redução de Armas (Strategic Arms Reduction Treaty), e que tem a expiração prevista para dezembro. Foi assinado em junho de 1982 entre os Estados Unidos e a União Soviética, e tinha como principal objetivo barrar os dois países em sua corrida armamentista, inicialmente limitando a produção de novas armas e, em seguida, diminuindo a quantidade existente.

No final de 2001, o tratado já havia conseguido destruir aproximadamente 80% do potencial atômico acumulado por Estados Unidos e União Soviética. Foi o maior e mais complexo tratado de controle de armas já visto na história, promovendo a convergência das duas grandes potências da época. Sua maior importância reside justamente na capacidade que apresentou de criar uma condição de confiança mútua numa área extremamente sensível como é a segurança.

Desde o final da Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlim em 1989, houve uma movimentação de rearranjo das potências, com Estados Unidos buscando um novo papel no mundo e União Soviética perdendo espaço e deixando de herança uma Rússia que se mostrou crescentemente saudosista com relação ao papel que outrora teve. A dificuldade em se entender efetivamente qual o papel a ser desempenhado por cada potência, seja ela ascendente, decadente ou global, dificulta nossa percepção de como o mundo se organiza, o que faz com que, mesmo passados 20 anos desde a queda do Muro, ainda chamamos o mundo atual de pós-Guerra Fria.

Em grande medida, isto vem da manutenção da centralidade da questão militar nas relações internacionais. Ainda que a dimensão econômica tenha ganhado muito relevo nos últimos anos, tornando-se parte fundamental da agenda internacional, a questão militar ainda é a grande responsável pela estruturação das relações internacionais. Ainda que desenvolvimento econômico e livre mercado sejam duas dimensões fundamentais do mundo de hoje, não se pode dizer que prevalecerão diante de segurança nacional e estabilidade mundial.

Mesmo diante da atual crise econômico-financeira, Estados Unidos continuam a gastar bilhões de dólares no Iraque e no Afeganistão, e a Rússia gasta outros tantos com Geórgia e Ossétia do Sul. A importância do encontro entre Obama e Medvedev não está na mudança do prevalecimento da lógica militar/segurança sobre a econômica, mas na capacidade de criação de condições para a consolidação definitiva de parâmetros que norteiam as questões de segurança, permitindo um maior desenvolvimento na área econômica.

O segredo aqui não está propriamente nos acordos que serão assinados, e sim no comprometimento das partes. Entre as ideias a serem discutidas está a formulação de um novo tratado, capaz de substituir o Start e criar novas condições de tratamento das questões militares em termos de armas atômicas. A grande novidade que se discute é a ampliação do tratado para todos os países detentores de armas atômicas. Num cenário internacional no qual países como Irã e Coreia do Norte estão apostando no desenvolvimento de suas capacidades nucleares, a articulação entre as potências torna-se cada vez mais importante.

É certo que estabelecer regras na área de armamentos atômicos é algo que auxilia na determinação de comportamentos e expectativas. No entanto, o mais importante nisto tudo não é o resultado em si, mas a necessidade de diálogo entre as grandes potências para que as regras sejam criadas. Um assunto com esta envergadura e impacto somente terão sucesso se for capaz de articular e, num segundo momento, comprometer os principais países do mundo. Em se alcançando sucesso, o resultado virá da consolidação da capacidade de diálogo entre as partes, fortalecendo o desenho de um novo sistema para as relações internacionais.

É neste sentido que o encontro entre Obama e Medvedev não deve ser compreendido como algo restrito às relações bilaterais entre Estados Unidos e Rússia. Mais do que isto, é um encontro no qual poderão sair as primeiras linhas de um novo grande acordo internacional na área de segurança. Uma vez solidificada esta dimensão do sistema internacional, abre-se o espaço necessário para que a dimensão econômica encontre novas expressões.

Garantir a segurança mútua e os padrões de comportamento aceitáveis na área de segurança e defesa permitirá o desenvolvimento de novos compromissos na área econômica, fazendo com que a era do pós-Guerra Fria seja substituída por um mundo marcado pela dispersão produtiva, capaz de ignorar fronteiras políticas e ideológicas.

Rodrigo Cintra é chefe do Departamento de Relações Internacionais na ESPM.