Título: Desafio de R$ 114 bi
Autor: Nunes, Vicente
Fonte: Correio Braziliense, 29/01/2010, Economia, p. 10

Se não cortar na carne, o governo terá que fazer esforço descomunal para cumprir promessa de economizar 3,3% do PIB e pagar juros da dívida

Se realmente cumprir a promessa de entregar, em 2010, um superavit primário de 3,3% do Produto Interno Bruto (PIB), como forma de recuperar a credibilidade das contas públicas, o governo terá que fazer uma economia de pelo menos R$ 114 bilhões. É esse o cálculo que os analistas estão fazendo e que tem provocado descrédito quanto à capacidade de a administração Lula atingir, em um ano eleitoral, tal quantia para o pagamento de juros da dívida. O superavit primário de 2010 terá que ser R$ 49,5 bilhões superior ao registrado no ano passado, de R$ 64,5 bilhões. A missão ganhará uma dimensão ainda maior se for levado em conta que, da economia de 2009, R$ 26 bilhões decorreram de receitas extraordinárias ¿ dividendos de estatais, depósitos judiciais e absorção do patrimônio do Fundo Nacional de Desenvolvimento (FND) ¿, que não tendem a se repetir na mesma proporção.

¿São esses números que nos fazem acreditar que a meta de 3,3% do PIB não será cumprida neste ano¿, disse o economista-chefe da Corretora Convenção, Fernando Montero, um dos maiores especialistas em contas públicas do país. Segundo ele, para cada ponto percentual de aumento do superavit primário em relação ao PIB, as receitas do governo terão de crescer 5% acima das despesas. ¿Mas não vejo espaço para isso acontecer, ainda que a atividade econômica avance muito, devido ao excesso de despesas já contratadas pelo setor público¿, acrescentou.

No entender de Montero, a intenção do governo de cumprir a meta de superavit primário de 3,3% do PIB em 2010 é boa. ¿Mas, infelizmente, a promessa não tem credibilidade¿, disse. A seu ver, mesmo que o governo entregue a meta, a desconfiança dos analistas e dos investidores será grande, pois o número em si deixou de ser relevante. ¿Agora, o que realmente importa, quando se olha para as contas públicas, é a qualidade do superavit, de onde vieram as receitas para a economia¿, assinalou.

Artificialismo O descrédito, destacou o economista-chefe da Sul América Investimentos, Newton Rosa, aumentou ontem, depois da divulgação dos resultados das contas públicas de 2009 pelo Banco Central. O superavit primário consolidado do setor público ¿ União, estados, municípios e estatais ¿ ficou em 2,06% do PIB, o pior saldo desde 2001, início da série histórica do BC que agrega as estatais, excluindo-se a Petrobras. A meta oficial, porém, era de 2,5%. Para chegar a ela, o governo foi obrigado a lançar mão de um expediente pouco ortodoxo: o abatimento de gastos com obras previstas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O desconto chegou aR$ 13,9 bilhões, o equivalente a 0,44% do PIB. Foi a primeira vez que se usou tal mecanismo.

¿É preciso ressaltar que todas as operações ¿ uso de receitas extraordinárias e abatimento de gastos com o PAC ¿ estão em conformidade com as regras. São coerentes com a metodologia¿, assegurou o chefe do Departamento Econômico do BC, Altamir Lopes. Ele ressaltou, ainda, que o compromisso do governo de fazer a economia de 3,3% do PIB neste ano para o pagamento de juros da dívida é real. E isso será facilitado pela forte retomada da atividade econômica, que impulsionará a arrecadação de impostos. Além disso, acabará a redução de tributos (IPI) dada a vários setores, entre eles o automobilístico e o de eletrodomésticos, para amainar os impactos negativos da crise mundial.

Espaço Altamir reconheceu, contudo, que o melhor seria o governo não contar apenas com o aumento de impostos para cumprir a meta de resultado primário. ¿Se houvesse espaço, de fato, seria melhor fazer o superavit por meio da contração de despesas¿, afirmou. Outro dado decepcionante, no entender dos analistas, foi o deficit nominal. Como o superavit primário, de R$ 64,5 bilhões, não foi suficiente para cobrir as despesas com juros, de R$ 169,1 bilhões, o rombo total das contas públicas atingiu R$ 104,6 bilhões, o maior da série histórica do BC e o equivalente a 3,34% do PIB.

Não vejo espaço para isso acontecer, ainda que a atividade econômica avance muito, devido ao excesso de despesas já contratadas pelo setor público¿

Fernando Montero, economista-chefe da Corretora Convenção

Fatura do brasileiro

A queda da taxa básica de juros (Selic), de 13,75% para 8,75% ao ano em 2009, não aliviou o peso da dívida pública nas contas do governo. Segundo o chefe do Departamento Econômico do Banco Central, Altamir Lopes, as despesas com juros totalizaram R$ 169,1 bilhões ¿ recorde histórico ¿, o correspondente a 5,4% do Produto Interno Bruto (PIB). Isso significa dizer que, ao longo do ano passado, cada um dos 192,4 milhões de brasileiros arcou com R$ 880 dessas despesas, fatura que pode aumentar neste ano caso o BC seja obrigado a elevar a Selic para conter pressões inflacionárias decorrentes, sobretudo, do incremento dos gastos públicos.

A conta dos juros acompanhou o crescimento da dívida líquida do setor público, que pulou, entre 2008 e 2009, de R$ 1,153 trilhão para R$ 1,345 trilhão ¿ um aumento de R$ 192 bilhões ¿, batendo em 43% do PIB. No entender de Altamir, esse salto não deve, porém, ser visto com preocupação, pois não se trata de descontrole. ¿Do ponto de vista de solvência (da dívida), não há com o que se preocupar. A dinâmica da dívida é de queda. Pelas nossas projeções, a relação com o PIB fechará 2010 em 40%¿, assegurou. Ele destacou também que boa parte do aumento no ano passado decorreu do comportamento do câmbio. Enquanto, em 2008, a moeda americana registrou alta de 32%, jogando o endividamento para baixo, já que o Brasil é credor em dólar, em 2009, houve o inverso, uma vez que o real subiu 26%.

Trajetória Na avaliação do economista do BC, também a dívida bruta do setor público, que não desconta as reservas internacionais do país, de US$ 240 bilhões, nem os créditos a receber, está com trajetória de queda. Não foi, porém, o que se viu no ano passado, quando o endividamento bruto passou de R$ 1,740 trilhão ( 56,3% do PIB) para R$ 1,973 trilhão (63% do PIB). É a dívida bruta que os analistas e as agências de classificação de risco olham para avaliar a saúde financeira de um país. (VN)