Título: No fundo do poço da crise tem mais fome ::
Autor: Graziano da Silva , José
Fonte: Valor Econômico, 16/07/2009, Opinião, p. A12

A saída requer políticas estruturais corajosas abrigadas sob um novo guarda-chuva da segurança alimentar

Talvez esse seja o pior momento da crise para as populações mais vulneráveis do planeta. O agito das apostas na antessala da recuperação significa também o ponto máximo das privações na vida de populações marcadas por carências elementares e um adicional de fome e de famintos no mundo. Não por acaso, as últimas estimativas da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) indicam que a humanidade pela primeira vez na sua história ultrapassou a triste barreira de um bilhão de pessoas subnutridas: em pleno Século XXI, um de cada seis habitantes do planeta passa fome!

Há dúvidas pertinentes sobre se chegamos ou não a um ponto de virada na crise internacional. Incertezas importantes cercam aquelas variáveis-chave que no sistema capitalista detém o poder de acionar ou não as alavancas do crescimento. O crédito é a principal delas. Sem a generosidade do oxigênio fiscal e, sobretudo, da condescendência contábil para a ruminação de ativos tóxicos, ninguém sabe hoje qual é exatamente o grau de consistência do sistema financeiro mundial.

Duas constatações se impõem nesse momento. A primeira, é que a saída para a crise será longa e desigual. Níveis excedentes de estoques e baixo uso de capacidade instalada tornam embaçado o horizonte da retomada da economia real, sobretudo do emprego. A segunda é que, apesar do colapso econômico, os preços dos alimentos permanecem altos, um terço acima do patamar de 2005, anterior à aceleração especulativa das commodities a partir de 2006. Como a renda disponível das famílias persiste em queda, acoplada ao declínio do emprego, fica difícil uma retomada pelo canal da demanda.

Em países desprovidos de redes de segurança social, esse quadro é agravado por uma espiral descendente de natureza fiscal. Em quase toda a América Latina e Caribe a arrecadação se apoia predominantemente em impostos indiretos sobre bens de consumo. Na fase aguda da crise, como agora, a receita despenca ao mesmo tempo em que a recuperação reclama políticas contracíclicas impetuosas, baseadas em cortes adicionais de tarifas e impostos.

Nesse fundo do poço não há saída para os países mais pobres sem ajuda internacional: quanto maior a demanda por incentivos fiscais e políticas sociais, menor a disponibilidade de receitas; mais dramática, por conseguinte, a contração da renda e da atividade econômica; maiores os níveis de desemprego e, por consequência, mais miséria.

A fome interliga essa teia de contradições e penaliza sobretudo o elo mais frágil da cadeia social formado pelas crianças. A cobertura da merenda escolar é pequena na América Latina. Pior que isso, em geral ela não incorpora a parcela da infância abaixo de cinco anos, não matriculada na rede pública.

Incentivos à agricultura - e em especial aos pequenos produtores familiares - mostram-se igualmente esparsos. Sobretudo raras são as vinculações institucionais entre a oferta desse setor e demandas cativas, como acontece no Brasil com a merenda escolar. Entre nós, felizmente, um circuito virtuoso foi reforçado há pouco graças ao gesto do bravo vice-presidente José Alencar, que tornou obrigatória a aquisição de 30% da alimentação das escolas junto à agricultura familiar. Criou-se assim uma circulação forçada da moeda que garante um mercado institucional para a pequena produção impulsionando o desenvolvimento local.

No fundo do poço ou não, o fato é que nesse momento a parcela mais pobre do planeta vive o espectro de uma emergência alimentar. Mais que isso: para ela, a saída da crise requer políticas estruturais corajosas abrigadas sob um novo e amplo guarda-chuva da segurança alimentar, com apoio especial aos agricultores familiares. É auspicioso que as cúpulas dos países ricos, até agora debruçadas quase que exclusivamente na equação financeira, tenham, finalmente, voltado sua atenção para esse componente negligenciado da crise. O diretor-geral da FAO, Jacques Diouf, saudou a nova postura do G-8, na reunião de Áquila, que decidiu aportar US$ 20 bilhões adicionais ao programa mundial de alimentação, ao mesmo tempo em que sinalizou a disposição de mudar a ênfase desse apoio, dando aos pobres meios de saciar a própria fome através do desenvolvimento agrícola. Curto e grosso, caiu a ficha: não é possível manter um bilhão de bocas dependendo da ajuda alimentar para sobreviver 365 dias ao ano, ao longo dos próximos anos...

Talvez não seja demasiado otimismo acreditar que desta vez não foi apenas mais um aceno protocolar da mão rica à boca pobre. Em primeiro lugar, o conceito de "ajuda" parece ter mudado de fato. Sobretudo o Japão insistiu enfaticamente num aggiornamento estratégico que incorpore, de uma vez por todas, o incentivo a investimentos na agricultura como pilar decisivo da luta pela segurança alimentar do mundo pobre. Hoje, ao contrário, a parcela da ajuda ao desenvolvimento destinada a essa finalidade patina no nível mais baixo dos últimos 30 anos - menos de 0,35% do PIB dos países desenvolvidos, descumprindo o pacto de 2002, em Monterrey, que previa pelo menos o dobro disso.

Um outro sinal positivo emitido em Áquila foi a sinalização de que, a partir de agora, a ajuda internacional será feita preferencialmente em dinheiro para não se traduzir em desestímulo adicional à agricultura dos países pobres. É conhecido o círculo de ferro criado pela desova de excedentes agrícolas dos EUA e Europa que, ao final, mais agravam do que aliviam o ciclo da fome e da dependência. A tragédia crônica do Haiti, assim como a de vários países africanos, é um clássico desse ardil.

Por fim, Áquila sinalizou a necessidade de uma nova governança mundial que dê conta da segurança alimentar em tempos de capitais erráticos e preços voláteis. A III Cúpula Mundial da Alimentação que acontece em Roma, em novembro, terá entre os seus principais desafios propor mecanismos concretos para essa reordenação.

O fato é que a virada regulatória na ordem financeira mundial requer uma contrapartida equivalente na formação dos preços da comida. Políticas de estoques de segurança; fundos de estabilização de preços; maior fiscalização dos mercados e depósitos adicionais de margem que coíbam exageros nos contratos futuros são alicerces indispensáveis da segurança alimentar em nosso tempo.

A fome tem diversos rostos, mais de um bilhão de rostos nesse momento. São existências marcadas pela desesperança. Cabe aos dirigentes mundiais refutar a fatalidade traduzindo em atos suas renovadas promessas.

José Graziano da Silva é representante da FAO para América Latina e Caribe.