Título: Endividamento ameaça recuperação
Autor: Neumann , Denise
Fonte: Valor Econômico, 30/06/2009, Especial, p. A16

O resultado efetivo e as consequências dos expressivos pacotes de recuperação das economias europeias - que envolvem recursos de 0,5% a 2,6% dos respectivos Produtos Internos Brutos (PIBs) - dividem opiniões na França. Para alguns economistas de fora do governo do presidente Nicolas Sarkozy, há uma falsa recuperação em andamento e, depois de alguns trimestres com quedas menos intensas e até com alguns resultados positivos na atividade econômica, as grandes economias vão voltar a patinar. O crescimento, dizem, não será duradouro porque todos os planos de relançamento das economias estão baseados em aumento de dívida - dos governos, das empresas e das famílias.

Um das principais vozes desta avaliação pessimista é Jacques Attali, que foi assessor econômico do ex-presidente francês François Mitterrand (1981-95). "Existe uma aparente saída da crise", diz ele. Ele embasa a sua avaliação em três pontos: o alto nível de endividamento da atual crise (em 1929, o endividamento mundial representava 250 % do PIB global; em 2007 ele estava em 350% e está hoje em 550%), o forte aumento do déficit público (na França ele vai ficar entre 7% e 7,5% do PIB este ano, muito acima dos 3% estipulados nas regras da União Europeia, e , por fim, o "fechamento" das diversas economias a partir de uma reação do consumidor ao discurso dos governantes que sugerem a preferência por produtos locais.

A preocupação com o aumento do déficit público é recorrente. E ela cresce com a comparação entre o tamanho dos pacotes públicos de ajuda econômica e as projeções de déficit, que vão muito além de 2009. O Tratado de Maastricht, que estipulou os critérios para a adoção da moeda única europeia, prevê que o limite de déficit público de 3% do PIB pode ser descumprido em períodos de recessão. Os problemas são o "tamanho" do aumento (mais que o dobro na França) e a disparidade de comportamento entre os países (a Alemanha deve sair de uma situação de equilíbrio em 2008 para um déficit próximo a 4% este ano, mas ainda próxima do limite, enquanto a Espanha deve chegar a um déficit de 8,5% já este ano), o que cria um risco para o própria sobrevivência do euro, avalia Roland Hureaux, ministro-conselheiro do Tribunal de Contas da França. "A Alemanha é um país muito vigilante com as finanças públicas e, se os outros países escorregarem na condução das suas contas sem uma perspectiva de recuperação a médio prazo, manter uma política monetária comum na Europa será difícil", observa.

Outro analista privado da economia europeia, Paul Jorion, doutor em ciências sociais da Universidade Livre de Bruxelas, observa que parte expressiva da incipiente recuperação da economia mundial está ancorada no apetite chinês por matérias-primas e commodities, necessárias para sustentar as obras de infraestrutura decorrentes do plano chinês de manutenção da atividade econômica. A China, contudo, não possui mercado interno para substituir minimante o peso do mercado americano no consumo dos produtos chineses, diz Jorion. Além disso, o plano de Barack Obama para tentar recuperar o vigor do mercado interno americano está baseado em uma premissa perigosa na sua avaliação: devolver àquele país o nível de consumo anterior à crise. "Se os Estados Unidos tiverem êxito nessa estratégia, as famílias voltarão a contrair empréstimos como antes e, em breve, teremos uma nova crise", observa Jorion, que trabalhou no mercado americano nos últimos nove anos.

Essa preocupação com a volta do excessivo endividamento também é partilhada por Atalli, que ainda não vê, no consumidor europeu, um comportamento condizente com a crise. "No futuro breve os salários vão cair e o desemprego ainda continuará aumentando como reflexo das medidas de ajuste à crise", avalia.

Na equipe econômica de Sarkozy há uma avaliação de que o pior da crise já passou. O risco de uma crise prolongada e com chances de recrudescimento não consta do cenário traçado pelo Banco da França. "O pior da crise ficou para trás, mas ela terá efeitos retardados sobre a economia e por isso ainda veremos aumento do desemprego e no número de falências. A recuperação começou, mas ela não será suficientemente forte para evitar essas conseqüências negativas", diz uma fonte do BC francês.

A chave para a retomada da economia mundial, avalia essa fonte, está na recuperação dos países que compõem o grupo dos Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), na não explosão do preço do petróleo e em uma mudança no padrão de desenvolvimento dos países (especialmente dos ricos), no caminho de uma economia que poupe os recursos naturais e com investimento em novas tecnologias.

A equipe econômica do governo francês está convencida de que o pacote de ¿ 26 bilhões lançado pelo governo em dezembro passado (e cuja mudança de leis embutida foi aprovada em uma velocidade recorde de cinco semanas pelo Legislativo francês) vai fazer efeitos em breve. Ancorado em investimentos privados (¿11 bilhões), públicos (outros ¿ 11 bilhões) e de empresas públicas (¿ 4 bilhões), o pacote já foi reforçado e hoje é considerado um dos maiores na Europa em proporção do tamanho de cada economia. Pelas contas da equipe do ministro Patrick Devedjian (encarregado do plano de recuperação), as medidas acrescentadas ao pacote já indicam um volume de ¿ 50 bilhões, ou 2,6% do PIB francês.

Mesmo considerando como provável a projeção de uma queda de 3% do PIB francês este ano, o pacote é apontado (também pelos analistas de fora do governo) como um programa capaz de mitigar os efeitos da crise sobre a economia francesa. Pelas últimas projeções da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o PIB francês vai cair 3% este ano, uma queda expressiva, mas bem inferior aos 6,1% projetados para a queda da economia alemã, país onde as exportações tem um peso no desenvolvimento bem superior ao francês. Na França, o setor público responde por 52% do PIB, peso que neste momento ajuda a segurar a economia como um todo. De acordo com a OCDE, o consumo do governo na França vai crescer 1,2% este ano.

Dentro do governo francês, que reconheceu oficialmente na semana passada que o déficit público deste ano chegará próximo a 7% em proporção do PIB, este aumento do endividamento não será um empecilho à retomada econômica (porque ele está direcionado aos investimentos públicos e do setor produtivo e à manutenção do poder aquisitivo da população) e também não necessariamente vai levar à inflação. Os gestores de política monetária na Europa continuam convencidos de que a estabilidade de preços é tarefa mais importante da autoridade monetária e não veem espaço para a volta da inflação no curto prazo. "Se os agentes econômicos tiverem certeza de que não virá aumento de imposto para compensar o aumento do déficit público, a inflação não virá. E no momento certo, haverá o corte de despesas", acredita a fonte do Banco da França.

Pascale Joannin, diretora da Fundação Robert Schuman, observa que vários países da União Europeia avançaram muito pouco na execução das reformas, especialmente a fiscal e a trabalhista. França e Itália, países cujo déficit público está em espiral ascendente, são exemplos. Ela está convencida, contudo, que o euro é um ponto forte para os 27 países da região (ainda que nem todos adotem a moeda) e, neste momento, essa união acabou ajudando os países a preservar certa estabilidade diante da crise. "Sem isso, eles teriam fabricado moeda", diz ela.

A repórter viajou a convite do Ministério das Relações Exteriores da França