Título: Educação em foco
Autor: Eduardo Belo
Fonte: Valor Econômico, 11/03/2005, Valor Especial, p. F1

O ensino superior brasileiro vive seus maiores desafios: preparar o jovem para o mercado e o país para a competição global, romper com seu histórico caráter elitista ampliando o acesso à educação, criar uma massa pensante capaz de levar a um crescimento econômico mais sólido e mais justo. E tudo isso para já. A tarefa não é fácil. "Precisamos descobrir novas formas de financiar as atividades universitárias", afirma o físico Ennio Candotti, professor titular da Universidade Federal do Espírito Santo e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Viajando pelo Norte e Nordeste do país, ele constatou a urgência de descentralizar a formação universitária - ou dar condições para que os profissionais com boa formação se estabeleçam em áreas de fronteira econômica, onde o desenvolvimento quer chegar e a falta de infra-estrutura técnica não deixa. Candotti cita um exemplo: a Petrobras precisa de especialistas para suas áreas de exploração de petróleo e gás no interior do Rio Grande do Norte e no Amapá, e não consegue praticamente ninguém. Faltam engenheiros, geólogos. Os que existem, não se vêem atraídos a viver em regiões mais remotas. O exemplo é simbólico, porque a Petrobras é uma das empresas que mais gastam com pesquisa no país. São R$ 500 milhões investidos nas universidades, fora o que ela emprega nas pesquisas de seu pessoal próprio, diz Candotti. Os números do Censo da Educação Superior de 2003 (o último disponível), do Ministério da Educação e Cultura (MEC), corroboram a tese de Candotti sobre a excessiva centralização do ensino. A região Sudeste tem 36% da população brasileira, mas 50,5% das instituições de ensino superior (IES) e 49% das matrículas do país. Aliar universidade e empresa em interesses comuns é justamente o que prega a Confederação Nacional da Indústria (CNI) para a proposta de reforma universitária. A entidade defende privilegiar a formação de mão-de-obra nas áreas de tecnologia intensiva, para fazer a economia avançar mais depressa. É o caso da Coréia do Sul, apontada pelos especialistas como modelo em termos de revolução educacional. Na visão da CNI, sem esse tipo de mudança, o Brasil vai jogar no lixo a maior parte do seu esforço de desenvolvimento nos próximos anos. É aí que as boas intenções esbarram na realidade. A qualidade do ensino superior no país ainda não tem como realizar essa proeza de imediato. Antes, precisa rever alguns conceitos, diz Candotti. E isso não significa, necessariamente, aumentar demais os investimentos. O ensino superior cresceu depressa nos últimos 20 anos no Brasil. Principalmente o privado. O país desponta como um dos cinco em que a educação superior é mais privatizada nas estatísticas da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). As instituições particulares começaram a proliferar nos anos 70 e explodiram na última década. Hoje são 88% de todas as escolas superiores do país, segundo o Censo. De 1975 a 2003, o número de matriculados cresceu 282% nas instituições privadas e 53% nas públicas. As particulares movimentaram R$ 12 bilhões em 2004. Nos últimos cinco anos, surgiram em média 200 instituições privadas - de todas as categorias - por ano. Das dez maiores universidades do país em número de matrículas na graduação, sete são privadas. A Universidade de São Paulo (USP), que forma um em cada três doutores brasileiros, centro de excelência de reconhecimento mundial, 27ª do ranking mundial de 5 mil instituições com maior produção de artigos científicos, fica em terceiro lugar, com 44 mil alunos. A maior tem 100 mil matriculados. Ninguém duvida que o advento da faculdade paga deu ao brasileiro uma perspectiva maior de avançar no estudo, principalmente para as faixas de baixa renda, até então quase alijadas do ensino superior em virtude das deficiências no ensino fundamental e médio e da concorrência desigual que enfrentavam nos processos seletivos. Os recentes programas de inclusão social, como o estabelecimento de cotas e a criação de um sistema de bolsas para alunos carentes, reforçam a importância do ensino superior privado. Ao criar bolsas nessas escolas, o governo admite a incapacidade do sistema público em absorver esse contingente. Ocorre que o ensino pago tem como um de seus compromissos remunerar seus investidores - exceto, em tese, instituições sem fins lucrativos, que no último censo representavam 21,2% do total. Desse modo, as faculdades com fins lucrativos se multiplicaram na maioria das vezes com uma visão de negócio puro e simples, que privilegia a perspectiva do custo menor por rentabilidade maior. Tanto é assim que o censo mostra que dois cursos, direito e administração, respondem por 26% dos alunos matriculados em uma instituição de ensino superior no país, em 2003. São dois cursos cujos investimentos são proporcionalmente maiores por parte do aluno, que tem uma extensa bibliografia pela frente. Óbvio que o país não pode prescindir de advogados e administradores. Mas é difícil admitir que um quarto dos formandos tenha necessidade de passar por esses dois cursos apenas. Só agora as IES privadas começam a acordar para a necessidade de investir na educação privada de qualidade, com uma aproximação dos anseios do mercado, admite Gabriel Rodrigues, presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes), que reúne 309 mantenedoras e 448 instituições, entre faculdades, universidades e centros universitários. Ele enxerga dois movimentos distintos nas instituições particulares. Um deles é buscar os cursos de maior demanda e mais rentáveis. É a visão gerencial. A demanda mal direcionada e as dificuldades financeiras dos alunos são responsáveis por 40% de ociosidade nas vagas dos cursos superiores, especialmente no setor privado. O segundo consiste em desenvolver a maior fragilidade do ensino superior pago do país hoje, a ausência de pesquisa. É também uma visão gerencial, mas impregnada de pelo menos dois conceitos: o da agregação de valor e o de que educação de qualidade é boa para todos. Até para a escola particular. Para Rodrigues, instituição privada que quiser se distinguir terá de, aos poucos, se firmar como um centro de excelência em pesquisa. E vai precisar de reconhecimento. "A faculdade privada hoje não tem nome, não tem status", diz. Um dos caminhos, defende o presidente da Abmes, é buscar algum tipo de cooperação com as empresas, seguindo o modelo que já vigora, com algum sucesso, em cursos superiores pagos de excelente qualidade, mas hoje praticamente limitados às chamadas ciências humanas, com destaque para economia e administração. "Será saudável quando essa parceria for plena", diz Ennio Candotti. Mas ela ainda está longe de acontecer. Ele se mostra um pouco cético em relação ao tema, porque "o ritmo da empresa é diferente do ritmo da vida acadêmica". Mas o presidente da SBPC acredita que alguns caminhos são possíveis. As empresas precisariam investir em suas próprias pesquisas, como praxe, mas apoiar e contratar a universidade em casos específicos. Nesse aspecto, a proposta da CNI para a reforma universitária vai na direção correta, defende o presidente da SBPC, porque sugere uma formação voltada para as necessidades do país e que busca a descentralização do crescimento econômico. Para isso, seria necessário identificar prioridades e canalizar recursos mais intensivamente para aquelas áreas que o país considera estratégicas. Candotti também faz a defesa de uma formação mais abrangente e com um pouco menos de presença na sala de aula. "Não faz sentido você formar um engenheiro com 4.200 horas de aula no Brasil, sendo que na Europa são 2.400." Ele acredita que, se a universidade investir mais em informática, equipamentos específicos para os cursos mais técnicos e bibliotecas - e estimular o aluno a fazer um uso criativo e intensivo desses suportes educacionais - o país formará profissionais mais bem preparados. Para alcançar esse padrão, é preciso correr e fazer mais gente ingressar na faculdade. Só que, antes disso, os ensinos médio e fundamental precisam ser repensados, reformulados e melhorados, afirma Candotti. Sem uma boa base, não é possível fazer uma boa universidade. Ele defende a idéia de que os professores do ensino médio sejam valorizados. "Nos países ricos, a diferença salarial entre um professor de ensino médio e um universitário quase inexiste", diz. Além da qualidade, será preciso prover a base com quantidade. Candotti calcula que faltem hoje cerca de 100 mil professores de ciências no ensino médio em todo o Brasil. O Brasil tinha 3,9 milhões de matriculados em cursos superiores de graduação. O equivalente a 9% da população entre 18 e 25 anos, considerada a faixa-etária padrão do estudante universitário. No primeiro mundo, a média é de 30% dessa população, segundo o MEC. A Coréia coloca 50% dessa faixa etária nos bancos da universidade. E não está sozinha. Países com maior identidade cultural com o Brasil, como Portugal e Espanha, também têm metade dos seus jovens no ensino superior. Mantido o ritmo de crescimento atual dos ingressos no ensino superior e do crescimento da população, o MEC projeta que em 2010 o país terá 9,2 milhões de matriculados no ensino superior. Terá atingido apenas 15% da faixa etária padrão. Uma prova de que o Brasil não pode prescindir do ensino privado - e, portanto, tem de engajá-lo na luta pela melhoria geral do ensino - está no empobrecimento das IES públicas. Segundo a Associação dos Dirigentes das Instituições Federais de Educação Superior (Andifes), os recursos para as universidades públicas só caíram na última década. De R$ 6,69 bilhões em 1995, recuaram para R$ 5,79 bilhões em 1998 e R$ 4,96 bilhões em 2001. Entre os desafios a solucionar está o preparo do corpo docente. Nesse aspecto, as particulares precisam andar mais depressa, se quiserem alcançar os padrões de excelência que defende Gabriel Rodrigues. Elas tinham apenas 12% de doutores e 39% de mestres entre os integrantes de seu corpo docente. As públicas ostentavam 35% de mestres e 21,5% de doutores. O problema da qualidade do ensino também esbarra nas necessidades do brasileiro das classes menos favorecidas. Como a maioria dos jovens precisa trabalhar, o ensino superior ainda é majoritariamente noturno, com cerca 70% dos cursos e das matrículas. Outro ponto que merece atenção é o elevado grau de desistência, principalmente nas escolas privadas, e a formação precária do quadro de professores. O número dos que concluem os cursos superiores tem crescido em ritmo inferior ao de ingressantes. Em dez anos (até 2003), aumentou em 173% o total de ingressantes, ao passo que o de concluintes subiu 115%. Mesmo considerando o mínimo de quatro anos entre o ingresso e a conclusão, é fácil perceber que muitos ficaram pelo caminho.