Título: Esquecidas pelo governo, estaduais pedem inclusão
Autor: Jussara Maturo
Fonte: Valor Econômico, 11/03/2005, Valor Especial, p. F6

O sistema estadual e municipal de ensino superior considera que o anteprojeto de reforma universitária não reflete a importância do segmento. Pelo último censo de Educação Superior, juntas, as universidades estaduais e municipais tinham 569.369 alunos matriculados em 2003, mais que as federais, com 567.850 estudantes matriculados. Para reparar essa distorção, os reitores ligados à Associação Brasileira dos Reitores das Universidades Estaduais e Municipais (Abruem), que reúne 39 instituições de 18 Estados, encaminharam uma proposta com dois pontos caros ao segmento - autonomia e financiamento. Os dois temas seriam tratados em um capítulo específico sobre o sistema, que a entidade quer ver incluído na próxima versão do anteprojeto. A minuta do governo reserva capítulos para as instituições federais e para as particulares, mas não cita o sistema estadual. "Esqueceram de nós", brinca o reitor da Unesp, Marcos Macari.

A Abruem quer deixar claro que o segmento estadual e municipal teria como órgão normativo os Conselhos Estaduais de Educação, e que seria competência dos Sistemas Estaduais de Educação Superior definir as normas de funcionamento das instituições. "Não precisa legislar para os Estados, mas dizer que existe o sistema, que a lei o respeita e que os conselhos estaduais vão fazer o que o governo faz no sistema federal. Isso garante a autonomia do ensino", diz o reitor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), José Izecias de Oliveira. Outro capítulo a ser inserido fala da participação da União no financiamento das instituições públicas estaduais e municipais de ensino superior. A proposta é trocar serviço da dívida dos Estados junto à União por investimento nas universidades. "Em troca do aumento de vagas", explica José Antonio dos Reis, presidente da Abruem e reitor da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG). E acrescenta: "Esse investimento não é nenhum benefício para o sistema estadual e municipal, pois até as privadas recebem pelo ProUNI". Pelos cálculos da associação, o repasse seria de R$ 1,5 mil por aluno matriculado no ano anterior. "Isso ajudaria o sistema estadual na meta de ter até 140 mil novas vagas até 2011. Seria um investimento do governo no sistema estadual, com custo inferior ao que vai ter no federal para atingir a meta de ampliar a participação do sistema público de 30% para 40%", diz Oliveira. As três universidades estaduais de São Paulo - USP, Unicamp e Unesp - estão na Abruem e apóiam a proposta. Mas pelo Conselho de Reitores das Universidades Estaduais de São Paulo (Cruesp), vão encaminhar uma proposta específica das três. Cruesp quer a extensão para as estaduais dos benefícios garantidos a instituições privadas filantrópicas, de isenção da cota patronal do INSS. "As estaduais tinham o benefício até 1994. Aí mudou a legislação e USP, Unicamp e Unesp pagam dezenas de milhões de cota patronal de INSS, mesmo com vagas gratuitas e operando hospitais universitários que atendem gratuitamente. Outras faculdades, privadas e até piores, são isentas porque se dizem filantrópicas", diz Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da Unicamp e presidente do conselho. A segunda proposta é estudar a troca do serviço da dívida dos Estados com a União por investimento em educação superior pública, como quer a Abruem. Brito defende que o novo texto inclua o projeto de lei do deputado federal Dimas Ramalho (PPS/SP), estendendo os benefícios da lei Rouanet a doações a universidades públicas (a lei isenta de imposto de renda doações a projetos culturais). Em geral, as universidades estaduais e municipais apóiam a iniciativa de repensar o ensino superior, mas não poupam críticas à versão preliminar do projeto. "Antes de fazer a reforma, é importante a construção coletiva de um grande projeto político-pedagógico de educação para democratizar o acesso à educação e investir na qualidade do ensino em todos os níveis", diz Reis. Brito considera reforma um termo inadequado. Para ele, deveria haver um plano estratégico para o desenvolvimento do ensino superior, incluindo a reforma. "Para ter um plano estratégico é preciso primeiro ter um diagnóstico e, hoje, sequer isso nós temos", avalia ele. Em manifesto assinado pelo reitor Adolpho José Melfi, a USP diz que o anteprojeto tende a desqualificar o conhecimento. "É o que se infere diante da relativização da pesquisa como instrumento de desenvolvimento e de avaliação das atividades acadêmicas, do viés assistencialista de várias de suas disposições e da vulnerabilidade das universidades a ingerências externas", diz o manifesto. Além de autonomia e financiamento, os reitores reivindicam que o projeto reflita a complexidade do universo das universidades estaduais e municipais. As estaduais são públicas e gratuitas, as municipais são públicas mas cobram uma taxa mínima do aluno. Além disso, concentra as maiores e as menores universidades do país. As estaduais e municipais oferecem pouco mais da metade das vagas do ensino público. "Estamos no Brasil inteiro e interiorizados", lembra Anselmo Fábio de Moraes, reitor da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com 8 mil alunos matriculados na graduação. Santa Catarina é o Estado com maior número de universidades municipais do país - são sete. E só uma estadual. "O número de municípios atendidos é muito grande. A UEG está em 48 dos 246 municípios de Goiás", ressalta Oliveira. Por isso tudo, lembra Reis, "são as estaduais e municipais que mais dão acesso ao ensino superior dos egressos do ensino médio público". Com 27,5 mil alunos na graduação, a Unesp mantém média de 43% vindos da rede pública de ensino, segundo Macari. A maior preocupação é manter esses jovens na universidade até o fim do curso. "Se o aluno mais pobre entra na universidade num curso noturno, ele pode trabalhar de dia. Mas se entra em curso diurno, de tempo integral como odontologia ou medicina, a permanência fica comprometida", conta Macari, que há mais de dez anos mantém um programa de apoio ao estudante. "Desde então, não tivemos problema de evasão por problema financeiro", garante. Os reitores também lembram que a oferta de vagas para cursos noturnos é instrumento de inclusão de jovens de baixa renda na universidade. Pelo censo de 2003, as instituições públicas ofereciam 18% das vagas do período noturno. Eram 407.444 vagas públicas, ante 1.863.209 oferecidas pelas particulares. "Nos cem artigos do anteprojeto, não se cita a palavra noturno. Mas tem a palavra cotas, que não nos anima muito", reage Brito. Segundo ele, sem usar cotas, a Unicamp ampliou em 40% o número de estudantes de escolas públicas que entraram na universidade em 2005. "A Unicamp tem 3 mil vagas no vestibular deste ano. Na primeira chamada, tivemos 937 estudantes da escola pública, 40% a mais do que em 2004", diz. Um estudo comparou o desempenho dos estudantes e concluiu que em condições semelhantes, alunos da escola pública têm resultados melhores. Com base nisso constatação, a comissão de vestibulares adicionou 30 pontos na nota do vestibular para os estudantes da rede pública. "O sistema não exclui, só seleciona os estudantes pela sua capacidade", defende Brito. Há consenso entre os reitores sobre a importância das parcerias entre universidade e indústria, mas com ressalvas. Para Brito, o assunto já está tratado na Lei de Inovação, aprovada no ano passado. "A maior restrição que vejo ao relacionamento universidade com a indústria está do lado da indústria. É o fato de que a indústria tem pouca atividade de pesquisa e desenvolvimento, no Brasil. E a base da colaboração universidade-indústria que acontece no mundo desenvolvido é a existência de cientistas nos dois lados", avalia o reitor da Unicamp.