Título: Fazendo a América à brasileira
Autor: Jorge Félix
Fonte: Valor Econômico, 11/03/2005, EU & FIN DE SEMANA, p. 10/13

A história dos brasileiros que procuram seu oásis americano parece interminável e é quase sempre dramática, na vida real e nos capítulos de uma novela das oito. O caminho é duro. E pode ser fatal na travessia do deserto em direção ao outro lado da frontei

Copacabana Beauty Salon, Brazilian Soccer House, Minas Travel, Muqueca Ponto de Encontro, Rio de Janeiro Salon. Não, não estamos falando da famosa Little Brazil, a 46th Street de Nova York ou, popularmente, a Rua dos Brasileiros. Esses nomes são cada vez mais comuns nas fachadas do comércio das cidades de Boston e Cambridge, destino de muitos brasileiros desde meados da década de 1980. Nos últimos cinco anos, o número de empresas abertas por eles nessa região cresceu 62%. No Estado de Massachusetts, somam-se mais de 500 empreendimentos. Esses dados, que fazem parte de pesquisa coordenada pela professora Ana Cristina Braga Martes, da Escola de Administração de Empresas da FGV-SP, provam como o tema da emigração brasileira, principal assunto da nova novela das oito da Rede Globo, "América", que estréia na segunda-feira, ganhou importância no mundo globalizado. A bibliografia nacional é rica em ficção e relatos biográficos que confirmam a vocação do Brasil, desde seu surgimento, para acolher estrangeiros. "Na escola, nossos lanches eram ignorados, enquanto os dos nossos colegas eram cobiçados. Nossos sanduíches de pimentão provocavam risos à nossa volta. Também sentíamos certa resistência dos pais de nossos colegas quanto a eles freqüentarem nossa casa. O inverso era permitido", conta no livro "Alma Estrangeira" (Ed. Ágora, 176 págs.) a psicóloga Judith Vero, húngara e judia, sobre seus primeiros dias no Brasil na década de 50. Esses relatos sempre foram comuns aos ouvidos brasileiros. Histórias de estrangeiros, dificuldades de adaptação, discriminação e, quase sempre, muito trabalho para vencer em terras alheias. Agora, os telespectadores vão ver brasileiros como personagens dessas situações. A ficção se legitima nos números oficiais do governo: atualmente, são 1 milhão de estrangeiros aqui e 3,5 milhões de brasileiros lá fora. "Nas últimas décadas, a imigração internacional assumiu um novo formato, mas os cientistas sociais brasileiros não estiveram tão atentos para essas mudanças. O fenômeno, que envolvia já vários países latino-americanos, não parecia significativo no Brasil porque nossa auto-imagem estava fixada nos tempos em que recebíamos imigrantes. Mas, no mundo contemporâneo, as correntes migratórias mudaram de direção e também o perfil do imigrante se transformou", escreve a antropóloga Ruth Cardoso, estudiosa da imigração, na apresentação do livro de Ana Cristina Braga, "Brasileiros nos Estados Unidos" (Ed. Paz e Terra, 204 págs.) Desenhar um perfil fidedigno da situação do emigrante, hoje, nos EUA, será talvez o maior desafio da novela de Glória Perez, uma ficcionista sempre com um forte pé na realidade. Foto: Renato Rocha Miranda/TV Globo

No deserto, à espera da hora de cruzar a fronteira: entre os latinos, é de brasileiros o número maior de emigrantes que tentam chegar aos EUA vindo de território mexicano A maioria dos chamados "emigrantes recentes" ainda começa a vida nos EUA como os desbravadores que chegaram por lá no boom da década de 1970, aqueles que cravaram a primeira bandeira na 46th Street, em Manhattan. Eles se enquadram, como destaca Ana Cristina, na chamada "última onda" de emigração para os EUA. O desembarque é quase sempre ilegal, como vai mostrar a saga da personagem Sol (Débora Secco) nos primeiros capítulos da novela, gravados na fronteira com o México. Depois do 11 de setembro, as dificuldades para obtenção do visto americano tornaram-se um muro quase intransponível a separar os EUA do mundo. Os emigrantes mais corajosos - ou sonhadores - passaram a desafiar o deserto. "De cada três pedidos de visto, um é negado. O brasileiro é o grupo que mais cresce entre os latinos que tentam cruzar a fronteira. Nos últimos cinco anos, o número de brasileiros detidos passou de 500 para 8.600", informa a socióloga Bianca Freire de Medeiros. O governo brasileiro calcula que, entre legais e ilegais, mais de 1,2 milhão de brasileiros vivem hoje nos EUA. O início do caminho rumo ao sonho é sempre o mesmo: o subemprego. "Os brasileiros lá têm de trabalhar muito. Somente em Nova York, há cerca de 600 dançarinas e mil engraxates tentando ganhar a vida", conta o historiador José Carlos Sebe Meihy, autor do livro "Brasil Fora de Si" (Parábola Editorial, 384 págs.) e também consultor de "América". Essa, no entanto, é uma realidade do emigrante de primeira geração, este que ainda conseguiu aproveitar a "última onda", mas já existe por lá uma segunda geração. "Há os que vão e se dão bem, os que se dão mal, os legais e os ilegais. Vamos mostrar uma visão real da questão", promete o diretor Jayme Monjardim. Nos últimos 20 anos, o emigrante brasileiro nos EUA conseguiu constituir uma importante comunidade e ganhou relevância econômica - apesar da dificuldade para entrar e, depois, para legalizar sua situação naquele país. Os recém-chegados ainda honram aquela imagem do lavador de pilhas de pratos. "Mas a característica marcante desse emigrante é o espírito empreendedor. Ele entrega pizza, faz faxina e junta capital suficiente para montar um negócio próprio e o que ganha retorna ao Brasil, para ajudar a família", constatou Ana Cristina, cujo material de pesquisa e livros (publicou ainda "Fronteiras Cruzadas", pela Ed. Paz e Terra) também foram enviados a Glória Perez. Foto: Marcio Aith/Folha Imagem

O emigrado é fonte importante de recursos para a família que está aqui e para o país (na foto, "dekaseguis" preenchem guias para remeter dinheiro, em Tóquio) Os dados levantados pela professora da FGV-SP são detalhados. Pelo menos em Massachusetts, a segunda geração de emigrantes brasileiros atingiu outro status. Esses empreendedores têm grande preferência por abrir salões de beleza, seguidos de lojas de produtos alimentícios para a comunidade, concessionárias de carros e até uma loja de material esportivo de mais de 2 mil metros quadrados. Desde o fim da década de 1980, constituíram uma grande rede de comunicação, com jornais e revistas, e integram três câmaras de comércio. "É indispensável a presença ativa do consulado do Brasil em Boston, para desenvolver essas redes sociais e comerciais", afirma Ana Cristina. Esse apoio oficial é fundamental para o empreendedor emigrante. Não só para o sucesso econômico, mas para a integração sócio-cultural, porque os brasileiros - e isso é comprovado por outra pesquisa da professora - têm grande dificuldade de integração dentro do frágil quadro de critérios que os americanos escolheram para definir as categorias étnico-raciais do país.

Entre emigrantes legais e ilegais, mais de um milhão de brasileiros vivem nos EUA, vindo de um começo que é sempre o subemprego

Em "Psicologia, E/Imigração e Cultura" (Casa do Psicólogo, 278 págs.), Ana Cristina conta histórias similares à vivida no Brasil pela húngara Judith Vero. Raquel, uma jovem brasileira de 21 anos, sempre se considerou branca até que, ao chegar em Boston, seu professor pediu a ela que falasse em nome das mulheres negras da classe. Antônio, mineiro de 36 anos, sempre fez questão de demonstrar orgulho por sua origem ("Sou brasileiro"). Em Boston, assustou-se ao ser chamado de "hispanic". Márcia, que deixou o Paraná há 15 anos, não tem mais paciência para explicar que, embora venha da América do Sul, sua língua não é o espanhol. "Com o crescimento da comunidade latina nos EUA, surgem maiores desafios para os brasileiros emigrantes manterem a identidade", diz Ana Cristina. O choque cultural que os emigrantes vivem no cotidiano é muito grande. O latino tem uma forma de pensar e de ver o mundo totalmente diferente da do americano. Gravei muitas entrevistas com ilegais na fase de pesquisa. Queria que essas pessoas se reconhecessem na novela. Quem vai para lá fica longe de suas raízes, da família, e acaba formando outra família, baseada em outros laços, de quem perdeu tudo", comenta Glória Perez. Seja pela questão social ou econômica - a remessa de dinheiro dos emigrantes para o Brasil é maior do que o faturamento com a exportação de aço, o primeiro produto na balança comercial do país - o governo brasileiro já tem pronto um novo projeto de lei para estabelecer uma política nacional de migração. "A filosofia do projeto é definir o fenômeno migratório como uma questão de direitos humanos e não de direito penal", resume o secretário-executivo do Ministério da Justiça, Luiz Paulo Barreto. "O emigrante parte em busca de um sonho, sonho este vendido pelos países de moeda forte." Um dos principais pontos do projeto, em fase de discussão pública neste mês, é a alteração do nome do Conselho Nacional de Imigração para Conselho Nacional de Migração - tendo em vista, como lembrou Ruth Cardoso, a alteração de rota na migração brasileira. "Estamos fazendo, como o Itamaraty, um trabalho de convencimentos dos países, mostrando que Brasil sempre recebeu muito bem os estrangeiros e que o cidadão brasileiro merece ser respeitado lá fora", afirma Barreto. Outros governos precisam ver o cidadão ilegal como um infrator, "no máximo", de uma lei administrativa e não penal, afirma. Ao mesmo tempo, o governo estuda medidas econômico-financeiras, por meio do Banco Central, para facilitar o envio de dinheiro para o país e discute com os governos americano e mexicano o combate às máfias dos "coyotes" na fronteira com o México, problema que tem se agravado nos últimos anos. "O que precisamos, e espero que a novela colabore para isso, é conscientizar os brasileiros de que a emigração é uma aspiração legítima, mas as pessoas nunca devem se submeter às quadrilhas de tráfico. Esta é a pior maneira de entrar no país. Esses 'coyotes' roubam os emigrantes e colocam as pessoas em situação de risco", diz Barreto. No entanto, é difícil explicar tudo isso ao cidadão que sonha colocar um letreiro luminoso à frente de uma fachada numa avenida americana. Assim como é complicado responder à pergunta inicial da trama de "América": "O que você seria capaz de fazer em busca de um sonho?" "Todos nós temos sonhos que guardamos na gaveta e muitas vezes vamos em outra direção, por acharmos impossível realizá-lo. Será que sonhar não custa nada?", devolve Glória Perez.