Título: Democracia é um ganho, mas há resgates a fazer
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 15/03/2005, Opinião, p. A14

Quando, há vinte anos, o ex-senador José Sarney subiu a rampa do Palácio do Planalto, nuvens negras ainda pairavam sobre a promessa de redemocratização do país. João Figueiredo, último general-presidente de um ciclo de 21 anos de ditadura militar, saiu pela garagem, sem passar ao sucessor a faixa presidencial. Para a história, justificou-se com o argumento de que era questionável a legalidade da posse de um vice-presidente sem que o titular tivesse sido antes empossado - e o eleito pelo Colégio Eleitoral, Tancredo Neves, estava internado em estado grave desde a madrugada e assim permaneceria por 37 dias, até a sua morte. Nos bastidores militares, no entanto, reinava ainda um jogo de pressões e contra-pressões para adiar a transferência do poder a um civil. O mais recente período de democracia brasileira esteve em perigo até o último momento e, até que o poder civil se consolidasse, manteve um forte conteúdo dramático. O esforço democrático que resultou no fim desse período negro, e foi responsável por um consenso nacional visto poucas vezes na história desse país, foi mais do que recompensado. Hoje, o Brasil completa vinte anos de poder civil - quase a mesma quantidade de anos que durou a última ditadura. É o maior e mais estável período democrático da história de sua República. Entre o fim do Estado Novo e a revolução de 1964 decorreram 19 anos de democracia, conturbados por sucessivas ameaças de intervenções militares. Nos vinte anos de redemocratização recente do país - chamada, nos seus primórdios, de Nova República - não se registraram graves instabilidades políticas. Institucionalmente, o país andou a passos largos. A sua moldura jurídica, nesses 20 anos, foi sendo refeita para adaptar-se aos novos tempos, nas diversas áreas que envolvem a vida dos cidadãos. A Constituinte de 1988, com todas as críticas que se possa fazer a ela, cumpriu o seu papel. Hoje, se o arcabouço jurídico brasileiro da era democrática convive com leis velhas, estas não ameaçam a base institucional do país. Esse período de progresso democrático institucional não resultou, é certo, num igual avanço das instituições políticas. Há liberdade partidária, mas não existem mecanismos para garantir partidos verdadeiramente representativos das forças sociais. Ainda prevalece nos interiores do país a política do compadrio, o coronelismo, a política de favores - e ela se reflete em toda a sua vitalidade na política nacional. Não se pode, no entanto, culpar a democracia por isso. Pelo contrário: o livre debate de idéias é a condição primeira para arejar a tradição política brasileira. Nesses anos, registrou-se uma crescente mobilização da opinião pública contra a corrupção e uma exigência cada vez maior do cidadão por transparência da administração pública. O processo de modernização da política brasileira começou, impulsionado por esses questionamentos - e continuará, alimentado também pelo processo de modernização econômica, que coloca em xeque os velhos hábitos de aliciamento político. Nos quartéis, reina a calma. Em "Democracia e Defesa Nacional: a Criação do Ministério da Defesa na Presidência de FHC", o cientista político Eliézer Rizzo de Oliveira constata que o mundo militar se adaptou à democracia. Ele descreve uma corporação que, aos poucos, foi removendo a cultura histórica do estar acima das instituições, para incorporar a realidade de ser parte dela. Os militares que ingressaram na carreira depois da redemocratização estão hoje muito mais envolvidos com o mundo civil. Romperam os muros dos quartéis: hoje estudam nas mesmas universidades que os civis, se confundem com eles nos bairros e têm preferências partidárias não mais como parte de uma corporação, mas como simples brasileiros. O Brasil comemora, mas ainda está longe de chegar a uma democracia plena. Para que isso aconteça, é necessário que a sociedade avance em direção à sua própria modernidade, não apenas política e econômica, mas também social. A democracia pressupõe oportunidades de acesso a milhões de brasileiros dela excluídos. Eles sequer têm condições de avaliar as vantagens de um regime democrático sobre uma ditadura, pois vivem à margem de seus benefícios. Para entender o ganho de uma democracia, é preciso estudar; para estudar, é necessário comer; ter acesso ao mercado de trabalho é pré-condição de cidadania. E a cidadania plena é a garantia que o cidadão, com sua consciência, vai modernizar as instituições políticas desse país.