Título: Para Ricupero, questão é de sobrevivência
Autor: Marília de Camargo Cesar
Fonte: Valor Econômico, 15/03/2005, Valor Especial, p. F4

O embaixador Rubens Ricupero, diretor da Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo, foi convidado recentemente a tomar parte do Conselho de Administração da Odebrecht. Ex-diretor geral da Unctad, o braço das Nações Unidas para o comércio, organização que ajudou a promover nos últimos dez anos e que formou nele uma visão global de comércio, Ricupero acredita que esse convite, ao qual disse sim, é um bom exemplo da crescente preocupação das empresas brasileiras com a necessidade de expandir mercados no exterior. "Minha indicação para esse conselho já é um indício da transnacionalização". A primeira reunião da qual participou foi neste mês de março. O economista tem uma opinião clara sobre a tendência à internacionalização: as empresas que não entrarem nessa onda não vão sobreviver, mesmo que dominem os seus mercados locais. "Como a liberalização comercial é inelutável e vai aumentar cada vez mais, essas empresas não vão estar seguras nem mais no próprio território", afirmou, em entrevista ao Valor. No caso da empreiteira baiana, Ricupero lembra que 85% das atividades de construção da Odebrecht hoje são fora do Brasil. "Se nos anos 70 a empresa tivesse ficado no Brasil, hoje seria uma empresa baiana. Mas tornou-se uma empresa internacional." A seguir os principais trechos da entrevista. Valor: Em uma de suas recentes viagens, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva incentivou os empresários a perderem o medo de transformar suas empresas em multinacionais. É tão simples assim? Rubens Ricupero: Não. É difícil. Creio que presidente quis encorajar as empresas e deve ser a primeira vez que um presidente diz isso e é valioso. Mas é uma tarefa difícil. A preparação para enfrentar os problemas internacionais tem que ser cuidadosa. Na área de construção, por exemplo, as duas empresas que se consolidaram mais internacionalmente, a Odebrecht e a Andrade Gutierrez, aprenderam com lições do passado e passaram por um processo cuidadoso de preparação à internacionalização. Valor: Essa preparação envolveu que tipo de esforços? Ricupero: No caso da Odebrecht, que eu conheço melhor, foi feito um trabalho de planejamento estratégico que começou nos anos 70, quando a empresa se deu conta que o mercado brasileiro estava secando para as grandes obras de infra-estrutura. Foi um trabalho cuidadoso e com metas. Eles, à época, queriam que depois de um certo número de anos metade dos negócios não fossem mais apenas ligados à construção e que metade fosse fora do Brasil. E conseguiram, com metas de longo prazo, utilizando a ajuda de grandes especialistas internacionais de algumas das melhores escolas de MBA do mundo. Trouxeram essas pessoas, adaptaram a estrutura da empresa. E traçaram uma estratégia muito inteligente, de se aliar a empresas em mercados muito competitivos, como EUA e União Européia. Valor: É fundamental para uma empresa que tem a intenção de ampliar a presença física no exterior ter uma visão de longo prazo? Ricupero: Sim, ela tem que ter um planejamento estratégico de longo prazo, que deve incluir a escolha dos países que serão prioritários. A escolha das melhores oportunidades tem que ser feita com muito cuidado, para tentar ir para lugares onde é mais fácil começar. É preciso também ter metas quantificadas. Um terceiro elemento: é preciso passar por um verdadeiro aprendizado. A Unctad, como se sabe, tem com a Fundação Dom Cabral um programa desse tipo, pois tem experiência de ajudar empresas de países em desenvolvimento a se prepararem para o desafio da internacionalização. Este exige muitas vezes certas modificações na estrutura de governança corporativa da empresa. São mudanças importantes. Empresas familiares às vezes têm mais dificuldades em fazê-las, porque é preciso ter uma estrutura que seja profissional e tecnificada. Valor: Isso limita esse jogo global às empresas maiores? Ricupero: Não acredito que apenas as grandes empresas tenham um bom padrão de governança. É possível que haja empresas menores que tenham também uma boa qualidade de gestão empresarial. Quando se fala em internacionalização, também é preciso ter em mente que há graus diferentes nesse conceito. A Unctad tem um índice composto com muito cuidado que é o índice de transnacionalização, que ajuda a enxergar muitas coisas. Esse índice tem vários critérios. Um deles é a porcentagem do faturamento que é gerado fora da matriz. Outros são em quantos países ela opera como uma empresa estabelecida localmente; a diversidade de origem nacional dos trabalhadores da empresa e qual a diversidade dos executivos. Valor: A razão que move a empresa a se transnacionalizar também é levada em conta? Ricupero: Por que as empresas começaram a sair do próprio país em vez de apenas exportar? A razão histórica e fundamental é de natureza comercial. Na época em que o sistema comercial era muito mais fechado que hoje, muitas vezes a única maneira de você poder vender dentro de outro país era se estabelecer como uma empresa daquele país. Isso explica por exemplo uma operação como a da Nestlé e outras suíças, pois a Suíça é um mercado muito pequeno. Então a primeira razão é de driblar barreiras comerciais. Nem sempre essas barreiras podem ser resolvidas por negociações. É o caso do setor de serviços. Nesse setor, é preciso ter o que na linguagem da Organização Mundial do Comércio se chama presença comercial, precisa estar lá fisicamente. No fundo, essa é uma maneira de multiplicar o seu mercado. Ou por causa das barreiras ou por causa da natureza própria àquela atividade. Tendo isso em mente, a imensa maioria das transnacionais aumentou sua operações por causa desses fatores. Valor: Em que sentido o processo de globalização ajudou a impulsionar essa tendência? Ricupero: A globalização permitiu uma enorme redução dos obstáculos comerciais. Com isso, tornou-se muito fácil implantar fábricas em outros países. Mas isso tem um resultado perverso. Às vezes, a globalização retira o incentivo de você estar estabelecido em outros países. Várias multinacionais que estão no Brasil antes tinham fábrica em quase todos os países da América do Sul e as fecharam. Com a liberalização comercial elas concentraram as operações no Brasil, para exportar para os outros. Valor: Um analista da Unctad comentou que o crescimento dos investimentos brasileiros em 2004 refletia o esgotamento de capacidade de absorção do mercado interno em alguns setores. Isso complementa a sua análise? Ricupero: Eu iria mais longe. Hoje, a produção não é mais uma atividade nacional. Antes a produção industrial era basicamente uma atividade nacional, daí essa ingenuidade brasileira de criar no passado o índice de nacionalização, que queria um produto 100% brasileiro. Hoje não existe mais isso. Veja o caso da Embraer . Poucos sabem que alguns de seus produtos, como as asas dos jatos, têm tecnologia e patente brasileiras, e fabricação feita nos Países Bascos, porque o custo do capital é mais baixo e também eles ali têm subsídios da União Européia. Isso mostra que uma empresa como a Embraer só pode sobreviver porque ela se transnacionalizou. Se ela tivesse ficado uma empresa brasileira em São José dos Campos teria desaparecido há muito tempo. Isso leva à seguinte conclusão: muitas empresas brasileiras não vão sobreviver se não se transnacionalizarem. Como a liberalização comercial é inelutável, vai aumentar cada vez mais, essas empresas não vão estar seguras nem mais no próprio território. Se elas quiserem sobreviver, têm que ganhar escala, aumentar o âmbito de operação para poder competir.