Título: Um olhar para a África
Autor: Martin Wolf
Fonte: Valor Econômico, 16/03/2005, Opinião, p. A13

A África subsaariana é uma exceção. Isso representa um feito em si, pois há uma geração, o sul e o leste da África pareciam atolados numa pobreza interminável. Hoje, apenas a África subsaariana está arruinada assim. Sabemos que o desenvolvimento funciona. O desafio é fazê-lo funcionar nesse continente. Deve-se creditar a Tony Blair, o premiê do Reino Unido, ter transformado isso numa prioridade da presidência rotativa do Reino Unido no grupo dos oito países de renda mais alta (G-8). Isso é um ônus que o G-8 pode facilmente arcar. Sobretudo, como parece provável, se os EUA se recusarem a contribuir com os recursos necessários, este será um ônus que a União Européia pode - e deve - arcar. O relatório da "Comissão para a África" de Blair apresenta o desafio e as soluções propostas (Our Common Interest - the Commission for Africa, March 2005). O documento é, para um relatório oficial, admiravelmente honesto a respeito das origens dos fracassos da África. Ele também oferece um conjunto de soluções amplamente convincentes. Além do mais, não exige meramente uma parceria entre a África subsaariana e os países de alta renda, porém foi produzido por uma parceria dessas: nove dos 17 comissários eram africanos. Durante as três décadas passadas, o Produto Interno Bruto (PIB) médio per capita caiu na África subsaariana, assim como a expectativa de vida. Nenhum outro continente sofreu tanto. Os conflitos causam tantas mortes a cada ano quanto as doenças epidêmicas, e são responsáveis por mais mortes e deslocamentos que a fome ou as enchentes. Entre 1998 e 2002, aproximadamente 4 milhões de pessoas morreram apenas na República Democrática do Congo. Nesse continente, os quatro cavaleiros do Apocalipse - conquista, conflito, fome e morte - não são meros visitantes. Eles se alojaram. Porque isso aconteceu? Como observa o relatório, acertadamente: "A África tem sofrido com governos que pilharam os recursos do Estado; que não puderam ou não quiseram oferecer serviços à sua gente; que mantiveram o controle por meio de violência e corrupção; e que desperdiçaram ou roubaram a ajuda". Isso está correto. Mas o tempo do verbo, lamentavelmente, está errado. Robert Mugabe continua praticando todas essas coisas. O regime do Sudão é pior. A herança colonial constitui pelo menos parte da explicação. Ela deixou fronteiras arbitrárias, Estados ilegítimos e altos custos de transporte. Os senhores africanos do desgoverno também contaram com a ajuda de muitas mãos. Potências estrangeiras toleraram a sua corrupção durante a guerra fria. O dinheiro que eles roubaram encontrou guarida nos centros financeiros do primeiro mundo. Empresas multinacionais pagaram as suas propinas. A tudo isso é preciso acrescentar o ambiente frágil do continente, o investimento inadequado em pesquisa e irrigação agrícola, o número excepcionalmente elevado de doenças, a entrada tardia no setor fabril e a dependência em commodities que sofreram enormes quedas nos preços relativos. Além disso, os países com altas rendas absorvem muitos profissionais. Há alguns anos, a Zâmbia tinha 1,6 mil médicos. Hoje restam 400. As dificuldades agora são tão agudas que se tornou praticamente impossível para a maioria dos países africanos se salvar sem considerável ajuda externa. Ademais, os países de alta renda de hoje arcam com uma responsabilidade substancial, histórica e contemporânea, pelo estado de penúria da África. E último, mas não menos importante, dadas as tendências atuais, a África subsaariana continuará atolada na extrema pobreza quase indefinidamente, enquanto o resto do mundo se tornará ainda mais rico. A tentativa de mudar essas tendências demonstrará não só nosso senso comum, como também o nosso senso de solidariedade humana. Felizmente, podemos fazer isso. É preciso conseguir uma combinação de melhoras no continente com maior ajuda externa. Os sinais de melhora podem ser vistos. Moçambique e Uganda apresentaram impressionante crescimento pós-conflito. Apenas na década passada, 16 países (ligeiramente acima de um terço do total) obtiveram taxas de crescimento superior a 4%, incluindo 10 países com taxas acima de 5% e três com taxa de cerca de 7%. O número de guerras civis caiu de 15 para nove, entre 2002 e 2003. Mais de dois terços dos países tiveram algum tipo de eleição multipartidária nos cinco anos passados. Igualmente, a União Africana se deslocou de seu antigo conceito de "não-interferência" para um de "não-indiferença". A idéia está correta, mesmo que sua implementação não esteja, ou, pelo menos, ainda não. Uma União Européia muito mais poderosa, porém, também promoveu uma enorme confusão na antiga Iugoslávia. No propósito de levar o progresso mais adiante, o relatório pede US$ 25 bilhões adicionais em ajuda externa anual, a ser implementada até 2010. "Condicionado a uma reavaliação do progresso no continente, haverá um segundo estágio, com mais US$ 25 bilhões ao ano, que deverá ser implementado até 2015." Os doadores também precisarão melhorar a qualidade da ajuda: mais subvenções, mais ajuda previsível e desvinculada, e menos burocracia. Na questão do comércio exterior, o relatório pede esforços para melhorar a capacidade de comércio limitada da África através do aprimoramento da infra-estrutura e da diminuição das barreiras internas ao comércio. Por outro lado, ele também apela para os países ricos reduzirem as suas barreiras às exportações africanas. A comissão também se concentra nas responsabilidades dos países africanos. Entre outras coisas, pede maior transparência e prestação de contas no governo. Ele ressalta a necessidade de encontrar formas de prevenir e gerir conflitos. Analogamente, ele se concentra em torno da necessidade de elevar mais os gastos em saúde e educação e de promover uma grande melhora no ambiente de investimento geral. O relatório não é perfeito. Seus pontos fundamentais, porém, são indiscutíveis. Os problemas da África subsaariana são grandes demais para que seus Estados enfraquecidos, suas economias empobrecidas e suas sociedades frágeis, possam resolvê-los por si sós. Se agirmos com base nessas recomendações, haverá uma boa chance de uma vida melhor para centenas de milhões de pessoas inocentes. A soma adicional de US$ 25 bilhões ao ano equivale a menos de 0,1% do PIB dos países de alta renda, um terço do que é gasto hoje anualmente apenas no Iraque e 7% dos gastos dos países ricos com subsídios agrícolas. Não é uma questão de não ter condições de obter o dinheiro e sim, de não ter condições de não obtê-lo. Poderá ser impossível persuadir os EUA a contribuírem com um aumento substancial nos recursos. Nesse caso, a UE deve assumir a tarefa. Em que lugar a Europa pode assumir um papel melhor no mundo do que na África? A Europa está vinculada à África pela história e pela geografia. Deixemos os europeus tomarem a iniciativa: a responsabilidade é óbvia e os benefícios potenciais, imensos.