Título: Risco fiscal em céu de brigadeiro
Autor: Márcio Garcia
Fonte: Valor Econômico, 05/01/2005, Opinião, p. A9

A economia brasileira apresentou em 2004 desempenho muito melhor do que o mais otimista dos analistas esperava. O ano de 2005 também se afigura bastante promissor, ainda que não deva repetir o desempenho do ano passado. O mais importante é assegurar que sejam reforçadas as condições para o crescimento sustentado. Para isso, é imprescindível mirar mais longe, não deixando que a folga momentânea nos afaste dos objetivos de longo prazo. Ainda que a política macroeconômica do governo Lula exiba inúmeras qualidades, em 2004 registrou-se perigoso escorregão quanto à política fiscal. A despesa primária total (o maior agregado das despesas do governo, exceto juros) aumentou quase 10% em termos reais. Se tal aumento tivesse viabilizado os necessários investimentos em infra-estrutura, o dano seria menor, mas tampouco foi o caso. Pior ainda, em dezembro anunciaram-se medidas que virão a comprometer mais ainda orçamentos futuros (aumento do salário mínimo, correção da tabela do IR e aumento das despesas do Orçamento para 2005). Se levarmos em conta que 2004 registrou crescimento acima da média, concluiremos que, ajustando pelo estágio do ciclo econômico, a política fiscal foi efetivamente relaxada em 2004, e tende a ser mais ainda em 2005. É possível que a meta de superávit primário para 2005 seja cumprida. Mesmo assim, estaremos perdendo grande oportunidade de reforçarmos a base do crescimento sustentado, o que nos custará caro em termos de renda futura. Crescer a 3,5% ou a 5% ao ano pode não parecer tão diferente. Mas em 50 anos a renda dos brasileiros, no segundo cenário, terá mais que dobrado em relação à do primeiro. Não podemos desperdiçar as oportunidades que temos de acelerar nosso crescimento. Com honrosas exceções, a leitura de nossa imprensa econômica leva um desavisado a pensar que o principal problema para atingirmos o crescimento sustentado é a política de metas para a inflação do BC. Economistas experientes chegam a afirmar que é a pertinácia do BC em atingir a meta para a inflação em 2005 (5,1%) que põe em risco o crescimento da economia. Trata-se claramente de um erro de pessoa. As atenções deveriam estar focadas na política fiscal e nas reformas que possibilitarão o equacionamento dos principais problemas futuros, notadamente o da Previdência. Achar que o crescimento vai depender de o BC mirar em 5,1% ou em 6% para 2005 é um notável equívoco. Mas certamente o processo de crescimento será abortado se a dívida pública (em proporção do PIB) voltar a ser crescente em conseqüência de desequilíbrios fiscais, que fatalmente voltarão caso o governo não prossiga na reforma da previdência, entre outras. A política monetária ganhará muito em eficiência à medida que o BC fortalecer sua credibilidade. Para isso, é preciso que o BC cumpra as metas. É certo, como ressaltam os críticos, que não fará muita diferença se a inflação de 2005 for 6% em vez de 5,1%. Mas não se trata do resultado final, a posteriori, mas da postura do BC perante a meta futura. Caso a autoridade monetária passe ao mercado a mensagem, explícita ou implícita, de que apenas objetiva não estourar a banda superior (7% em 2005 e 6,5% em 2006) ao invés de tentar atingir o centro da banda, há um risco não desprezível de que as expectativas de inflação aumentem a ponto de estourar o limite superior da banda.

Aproveitar o bom cenário internacional para acelerar o crescimento requer o aumento da poupança pública

Dada sua enorme credibilidade, o Federal Reserve sob Greenspan pode se dar ao luxo de não especificar qualquer meta inflacionária, sem que isso represente qualquer risco de explosão das expectativas inflacionárias. Não é esse o caso, ainda, de nossa política monetária, que há apenas parcos dez anos derrotou a hiperinflação. A importante discussão sobre a autonomia operacional do BC ilustra bem a questão. Em entrevista ao Valor (3/1/), o ministro Palocci, ao reafirmar a necessidade de se dar ao BC autonomia para cumprir a meta para a inflação, disse que "... ainda há resistências no Congresso, nos partidos e na sociedade". Ou seja, a idéia de que o melhor para o crescimento econômico é dar uma sólida afirmação institucional de que o país não voltará a tentar usar a inflação como forma de financiamento público não é ainda tão disseminada entre nós quanto na maioria dos países desenvolvidos, e nos países em desenvolvimento que vêm obtendo melhores resultados econômicos. O que atemoriza o investidor que considera investir na economia brasileira, gerando produção e emprego, não é se inflação neste ano será de 5,1% ou 6%. O que atemoriza o investidor é que a atual política econômica seja revertida e voltemos a cometer os erros do passado. Nesse cenário de terror, a inflação não será só de 6%, mas muito mais elevada, e o crescimento não virá. Mostrar que estamos dispostos a abrir mão do uso indevido da política monetária, e conferir autonomia operacional ao BC, muito auxiliaria a aumentar a credibilidade da política monetária. Com isso, a eficiência da política monetária seria aumentada, reduzindo os juros reais. O mesmo vale para a reforma da Previdência e outras que garantam a sustentabilidade de nosso endividamento público. Por dever de ofício, o BC de hoje deve ser mais realista do que o rei. Se prosseguirmos no bom caminho, o BC ganhará mais credibilidade e poderá ser menos rígido no futuro, sem comprometer a obtenção da meta para a inflação. O BC enfrenta um dilema entre flexibilidade e credibilidade. Hoje, um pouco mais de flexibilidade pode custar muito da credibilidade a duras penas obtida. No futuro, poderá exercer mais flexibilidade sem comprometer a credibilidade. A autonomia operacional ajudaria muito. O mix ideal das políticas macroeconômicas é uma política fiscal mais restritiva (cortes de gastos, sem prejudicar os investimentos públicos) e uma política monetária mais frouxa (taxa de juros reais mais baixas). Isso naturalmente implicaria também taxa de câmbio real mais depreciada. Também melhoraria a sustentabilidade da dívida pública, o que propiciaria menor prêmio de risco e ainda menores taxas de juros. Tudo isso atuaria positivamente sobre o crescimento. Em seu primeiro mandato, FHC poderia ter reforçado as condições propícias ao crescimento sustentado se tivesse produzido os superávits primários que teriam diminuído nossa vulnerabilidade quando sobrevieram as crises internacionais do final dos anos 90. Na bonança, não o fez; na tempestade, fez, mas a janela de oportunidade já se havia fechado. Muitos expoentes do governo Lula têm dito que a política econômica atual não é a mesma do governo FHC. Seria muito bom, então, se todos se unissem para evitar a repetição dos erros do primeiro mandato de FHC, o que nos impediria de perder mais uma oportunidade de acelerarmos nosso crescimento.