Título: A lição da história
Autor: Miguel Reale Júnior
Fonte: Valor Econômico, 18/03/2005, Opinião, p. A10

A maioria dos eleitores, passado um ano do pleito, esquece os candidatos a deputado federal e estadual que sufragou nas urnas e a que partido político pertenciam. O liame entre o povo e o parlamento é tênue, e quando se dá não é em torno de questões nacionais, mas com vista a interesses corporativos ou regionais. O Executivo dita a pauta do Legislativo e os partidos políticos são inconsistentes, a se ver pela dança das legendas. O sistema político adoentado sobrevive à custa do uso contínuo de Medidas Provisórias. Com algumas distinções, já "vimos esse filme". Ao sair da ditadura getuliana, em 1945, estabeleceu-se o pluralismo partidário, com poucas exigências ao reconhecimento de agremiações políticas. A vida política, no entanto, permaneceu à sombra do getulismo, pois surgiram três grandes partidos, dois de fonte getuliana, o PSD e o PTB, e outro construído com os próceres de oposição ao Getúlio, a UDN. Num país ainda agrário, o PSD tinha por esteio de um lado os chefes políticos que se firmaram na estrutura do Estado Novo com os interventores dos estados, e de outro o irremovível domínio dos tradicionais coronéis no interior do país, que mantinham o poder político-social. De 1945 a 1964, o PSD foi majoritário no Congresso Nacional, com caráter conservador, mas de marcada habilidade para a conciliação e o equilíbrio. O PTB, também criado por Getúlio, trazia o ideário do trabalhismo sindicalista, mas subordinado ao Estado e tendo por subproduto o peleguismo. Possuía, todavia, inovadora capacidade de mobilização nos grandes centros urbanos em torno de temas nacionalistas e de reformas de base. Tanto Getúlio como Juscelino faziam campanha política para as massas com o PTB, mas governavam com o PSD. A UDN, de marcado cunho liberal-conservador, tinha por principal programa a luta contra Getúlio e em oposição aos partidos por ele criados. Arvorava-se em possuir o monopólio da virtude, postura que até meados dos anos 90 o PT representou, a ponto de me parecer que fosse a UDN de macacão. Cabe ressaltar que no período de 45 a 64, mesmo vigente o nocivo sistema eleitoral proporcional aberto, em meio a graves acontecimentos, como o suicídio de Getúlio e a renúncia de Jânio, estavam os partidos políticos a duras penas sobrevivendo, mas sem grandes diferenças programáticas, sem especificidades que os identificassem claramente frente ao eleitorado. Tal sucedia, bem como a insegurança institucional, em boa parte, graças à estrutura política constante da Constituição de 1946. Essa permanente crise política encontrava suas raízes na fragilidade dos partidos, em uma disputa fratricida própria do sistema proporcional aberto, com o acréscimo da fragmentação interna das agremiações divididas em facções que se digladiavam, de que são exemplos o PSD com a Ala Moça, a UDN com a Bossa Nova. Outros fatores estavam na possibilidade de coligações partidárias, com uniões diversas entre partidos, conforme as conveniências em cada unidade da federação, e na mudança livre de um partido para outro, a dança de legendas, circunstâncias que confundiam ainda mais a identificação dos partidos junto ao eleitorado.

O sistema proporcional aberto não permite que haja solidariedade partidária em torno de propostas e programas

O golpe militar de 1964 terminou por extinguir os partidos políticos existentes, transformando 13 partidos em apenas 2, impondo um bipartidarismo artificial. Vigia, no entanto, identicamente o sistema eleitoral proporcional aberto. Na Constituinte de 1987, além da derrota do parlamentarismo por imposição do Planalto, foram com o presidencialismo afastadas a adoção do sistema eleitoral distrital misto, bem como a exigência de fidelidade e disciplina partidária e a cláusula de barreira para ao reconhecimento de representação parlamentar. Não se deu qualquer passo quanto à estrutura político-institucional do país com a Constituição de 1988, retaguarda essa que se manteve por um acordo pela inércia na frustrada revisão constitucional de 1993. O sistema proporcional aberto dispõe que os candidatos disputam os votos em todo o Estado, sendo determinado um quociente eleitoral, resultado da divisão dos votos válidos pelo número de vagas. A soma dos votos recebidos pela legenda e por todos os candidatos do partido é dividida pelo quociente eleitoral, fixando-se o número de cadeiras do partido. O voto de todos importa para determinar as vagas obtidas; no entanto, o principal inimigo do candidato é o outro candidato do próprio partido, com o qual disputa idêntica clientela. Cada um deseja mais de tudo superar os colegas de legenda, em disputa, muitas vezes, do mesmo reduto eleitoral, do apoio da mesma categoria profissional. Não se forma, assim, uma solidariedade partidária em torno de propostas e programas. Os vencedores no pleito não estabelecem qualquer vínculo com o partido pelo qual foram eleitos, fato esse que, somado à ausência de exigência de fidelidade partidária e de compromissos programáticos, leva à desordem partidária no Parlamento. A história brasileira de 45 a 64 indica os riscos da organização política então adotada, que difere da hoje vigente pela existência de Medidas Provisórias. O PT pouco contribuiu, desde seu nascedouro e em especial na Constituinte, para o aperfeiçoamento do sistema político, preferindo o presidencialismo, também, no plebiscito de 1993, e o voto proporcional aberto, na certeza de que com um líder carismático como Lula chegaria ao poder. Hoje no poder, o PT passou a praticar com desabrida arrogância os vícios de nossa história política, ou seja, a pescaria de varejo e o arrastão congressual, a barganha e a imposição de desejos ao Congresso e aos demais partidos. O resultado foi colhido rapidamente, como se vê na eleição de Severino Cavalcanti. Não seria a hora de o presidente da República e seu partido deixarem de se fazer de vítimas irritadas com a derrota ou com as críticas, para pensar no futuro e perceber que a reforma política é um caminho obrigatório para a segurança da própria democracia? Miguel Reale Júnior é advogado, ex-ministro da Justiça, professor-titular da Faculdade de Direito da USP e sócio da Reale Advogados Associados ...