Título: Tumulto e solidariedade
Autor: Campbell, Ullisses
Fonte: Correio Braziliense, 03/03/2010, Mundo, p. 44

Acampados em aeroportos do Rio e de SP, chilenos protestam contra falta de voos. Apenas ajuda de brasileiros ameniza situação

Funcionário da Lan Chile tenta, sem sucesso, organizar uma fila de passageiros à espera de embarque para Santiago: dois voos cancelados

São Paulo ¿ Pelo menos 4 mil chilenos estão no Brasil tentando voltar para casa e não conseguem, devido à falta de voos para Santiago. A estimativa é da embaixada chilena no Brasil. A maioria deles está em São Paulo, em Santa Catarina e no Rio de Janeiro, onde houve protesto por causa da falta de voos e de informações. Eles usaram uma bandeira do país e cartazes para pedir ajuda à companhia aérea Lan Chile, ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao presidente eleito do Chile, Sebastián Piñera. Em São Paulo, vários saguões do Aeroporto de Guarulhos estão lotados de chilenos. Dois voos programados para ontem foram cancelados em cima da hora e os chilenos que já haviam feito check-in fizeram um tumulto.

Listas de espera em três companhias que operam para Santiago tinham, até as 18h, pelo menos 600 nomes. ¿O problema é que dependemos da liberação dos aeroportos. Não adianta colocar passageiros nos aviões¿, justificou a atendente Maakika Garritha Blanka, funcionária da Lan Chile. Nem sempre os passageiros entendem o argumento das companhias aéreas. A estudante Jocelyn Smith Cea, 24 anos, está no Brasil desde o carnaval. Ela conta que está desde domingo no Aeroporto de Guarulhos tentando voltar para Santiago. Sem dinheiro para pagar hotel e alimentação, passou a pedir dinheiro para passageiros nas filas das companhias aéreas que fazem voos para os Estados Unidos e a Europa. ¿Os brasileiros são mais sensíveis e colaboram com notas de R$ 10 e R$ 20. Os americanos dão moedas¿, reclama.

Sem validade A veterinária Constanza Veliz, 33 anos, veio ao Brasil participar de uma reunião com um fornecedor de produtos químicos. Aproveitou para conhecer algumas cidades do interior de São Paulo. Ao tentar voltar para Santiago, na segunda-feira, descobriu que a sua passagem da TAM não estava mais valendo. ¿No balcão, informaram apenas que vão devolver o meu dinheiro para a conta do cartão e fizeram questão de frisar que não vão cobrar a taxa de embarque, que já estava paga. Achei um absurdo. Uma falta de respeito¿, disse, nervosa.

Até ontem à noite não havia previsão de quando os passageiros chilenos que acamparam em Guarulhos vão voltar para casa. Para hoje, estão programados dois voos, mas eles dependem de confirmação. Além de falta de dinheiro para alimentação e hospedagem, os turistas chilenos que estão presos no Brasil reclamam da falta de informações. A vendedora Sol Elizondo Rojas, 28 anos, não fala com os seus familiares desde sábado, dia em que a terra tremeu no Chile. ¿É desesperador saber que a sua família pode estar morta porque o telefone não dá sinal algum¿, ressaltou.

Ônibus No Aeroporto Antônio Carlos Jobim, o Galeão, no Rio de Janeiro, cerca de 200 turistas chilenos esperam acampados para embarcar. Assim como em São Paulo, eles tentam embarcar pelo menos para Buenos Aires, na Argentina. De lá, eles pretendem chegar a Santiago e a outras cidades chilenas de ônibus. ¿O Consulado chileno não ajuda em nada. Por isso, peguei um ônibus no Rio e vim para São Paulo tentar embarcar. O meu problema nem é falta de dinheiro. Posso pagar uma passagem agora. Mas não tem voos¿, ressalta o biólogo Tomás de Poveda, 33 anos. Ele estava de férias em Angra dos Reis e perdeu contato com a mãe, que mora em Santiago.

Para alívio dos chilenos, o cônsul Horacio Del Valle teve ontem uma reunião com a Infraero e as empresas aéreas que operam para o Chile. Na saída, prometeu tomar providências para auxiliar os turistas chilenos que esperam voos no Rio e em São Paulo. O cônsul prometeu ainda manter um diplomata chileno nos dois aeroportos para prestar auxílio e fazer um cadastro de passageiros para que possam receber descontos negociados em hotéis, pensões e albergues ou se hospedar na casa de voluntários. ¿Nesse momento, podemos contar e muito com a solidariedade do brasileiro. Muitas pessoas nos telefonaram colocando suas casas à disposição e recebemos uma doação de R$ 6 mil, que deveremos usar para alimentação¿, ressaltou Del Valle.

Em Santa Catarina, onde cerca de 200 turistas chilenos estavam à espera de voos, pelo menos metade deles pegou ônibus e seguiu ontem para Buenos Aires. No entanto, cerca de 150 que estavam em municípios próximos chegaram a Florianópolis para tentar embarcar. Alguns seguiram de ônibus para São Paulo, onde há mais voos e lojas de empresas chilenas.

Pedido de calma Segundo a Embaixada do Chile no Brasil, o número de pessoas ligando para o local em busca de informações continua intenso. ¿Não conseguiria precisar em números, mas o telefone toca o tempo inteiro. São brasileiros e chilenos querendo saber dos familiares que estão nas áreas afetadas¿, afirmou um funcionário da embaixada. Além de buscar notícias sobre as pessoas que ainda não entraram em contato com a família, funcionários da embaixada procuram consolar e ajudar quem procura o local. ¿Agora, eles precisam ter calma e paciência para esperar mais informações¿, comentou a fonte.

Voos recomeçam hoje

Após três dias sem operar por causa do terremoto, o Aeroporto Internacional de Santiago reabriu ontem. Duas companhias que fazem voos para o Brasil, a TAM e a Lan Chile, restabeleceram cinco voos diários da capital chilena para São Paulo e Rio de Janeiro. A partir de amanhã, as companhias também vão operar com cinco voos saindo do Brasil rumo a Santiago. Ainda assim, o governo brasileiro vai enviar um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) a Santiago para trazer mais 30 brasileiros que estão no Chile tentando voltar para casa. Ontem, o avião da FAB que a Presidência da República usa como reserva para transportar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva trouxe 30 brasileiros que estavam em Santiago no momento em que o terremoto de magnitude 8.8 na escala Richter atingiu o país. O desembarque ocorreu às 2h da madrugada e foi cercado por emoção.

O professor Antônio Carlos Moura, 43 anos, conta que se emocionou quando o avião decolou do Chile. ¿Vim a viagem inteira pensando na vida, nas realizações e nos projetos que não concretizei. Quando a terra tremeu, só veio a ideia da morte na minha cabeça¿, relata. Ele conta que tinha acabado de sair de uma loja quando o chão tremeu. ¿A sensação é a mesma que ficar em pé numa rede. Ela embala de um lado para o outro e você acaba caindo¿, relembra. Antônio tem ferimentos no joelho e no cotovelo.

Os primeiros voos internacionais comerciais entre o Chile e o Brasil começaram nas ultimas horas de ontem, com previsão de chegada para a manhã de hoje em São Paulo. A previsão das companhias aéreas é que os voos operem lotados até a sexta-feira. ¿Vamos dar prioridade a passageiros feridos e que tiveram voos cancelados¿, informou Sheyla Soares, atendente da TAM.

Em nota, a Lan Chile também disse que a prioridade será para os passageiros que já deveriam ter embarcado logo após o terremoto e passageiros com crianças Já a Gol, que também opera com um voo diário para Santiago, ainda não teve autorização para usar o aeroporto da capital chilena.

O avião da FAB vai resgatar brasileiros que estão nas cidades mais atingidas, como Concepción. ¿A previsão é de que o avião pouse nessa cidade levando equipamentos e, na sequência, pare em Santiago para embarcar os brasileiros¿, disse o embaixador brasileiro no Chile, Mario Vilalva. O Hercules C-130 levará para o Chile aparelhos de hemodiálise, telefones satélites e um hospital de campanha da Marinha, além de técnicos em avaliação de estrutura. Parte desse material foi doado por empresas particulares e outra foi confiscada na alfândega. Na volta, o avião vem com brasileiros. A FAB tem uma lista com cerca de 700 brasileiros que querem voltar ao país. A prioridade no embarque será de idosos, pessoas com problemas de saúde, grávidas e crianças. Estima-se que, ao todo, mais de mil brasileiros procuraram a embaixada do Brasil no Chile desde sábado tentando voltar para casa. (UC)

Lembranças do medo

Gustavo Werneck

Belo Horizonte ¿ Depois do pesadelo, o aconchego da terra natal. Chegaram na manhã de ontem a Belo Horizonte, procedentes de Santiago, no Chile, a escritora e ilustradora Angela Lago, residente na capital mineira, e a professora da Faculdade de Educação da UFMG Maria Zélia Versiani Machado, moradora de Sabará, na Região Metropolitana de BH. As duas participavam do Congresso Ibero-americano de Língua e Literatura Infantil e Juvenil (Cilelij), ao lado de um grupo de autores e profissionais ligados ao setor editorial brasileiro. No momento do abalo sísmico que atingiu o país, Angela e Zélia estavam num hotel no Centro da capital chilena e puderam sentir os efeitos do fenômeno que arrasou cidades e espalhou pânico.

As duas escritoras fazem parte do grupo de 30 brasileiros que desembarcaram em São Paulo e ficaram retidos no Chile por causa do terremoto da madrugada de sábado. Após a longa e esperada viagem, já em casa, na histórica Sabará, Zélia ainda mantém bem vivas na memória as cenas de terror que viveu na capital chilena, na madrugada de sábado. Cansada da longa viagem iniciada na noite de segunda-feira, a professora da UFMG contou que ainda ficou numa situação melhor do que muitas pessoas, pois permaneceu todos os dias no hotel. ¿Não nos afastamos dali em momento algum, para evitar qualquer problema. Mesmo assim, foi uma experiência terrível. Nós, brasileiros, não estamos acostumados com tais situações. Além de tudo, eu ainda estava hospedada no sétimo andar¿, relata.

Os piores minutos ¿ ¿Uns falam em três, outros, dois, mas a verdade é que o tempo representa uma eternidade¿ ¿ estão relacionados ao barulho causado pelo terremoto. ¿Parece um barulho que vem do centro da Terra e que deixa a gente muito apreensiva. Lembrei-me o tempo todo do Haiti, da destruição. Aquelas imagens mostradas pela televisão não me saíam da cabeça¿, afirmou Zélia, ainda com voz marcada pela tensão.