Título: Situação de risco
Autor: Erilene Araujo
Fonte: Valor Econômico, 22/03/2005, ÁGUA, p. F1

Um bilhão de pessoas em todo o mundo sofre com a escassez de água, 2,4 bilhões não têm acesso a saneamento básico e 2 milhões morrem, todos os anos, vítimas de doenças decorrentes da seca, saneamento e higiene. No Brasil, apesar de o país ter 11,6% de toda a água doce do planeta, o desabastecimento atinge 1,3 milhão de pessoas só na região do semi-árido, que agrupa municípios do Espírito Santo ao Piauí. A água poluída mata milhares de brasileiros e consome pelo menos 50% dos gastos com internação hospitalar. Estimativas mostram que o país carece de investimentos da ordem de R$ 50 bilhões para resolver os problemas hídricos, como tratamento de rios e esgotos. Mas o cenário não é de desespero, dizem os especialistas. No "Dia Mundial da Água", a comemoração vai girar em torno do fato de os brasileiros estarem mais conscientes para a necessidade de racionalizar o uso da água e de o poder público ter registrado avanços consideráveis no gerenciamento e na gestão de recursos hídricos. Por iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU), começa hoje, 22 de março, o chamado decênio internacional Água Fonte da Vida, com fixação de metas para os países envolvidos no projeto. Com isso, a ONU pretende viabilizar a proposta de incluir 1,5 bilhão de pessoas no sistema de abastecimento de água até 2015. As metas do Brasil estão em fase de elaboração e serão incluídas no Plano Nacional de Recursos Hídricos. A conclusão do plano está prevista para o fim do ano. De acordo com o secretário nacional de Recursos Hídricos, João Bosco Senra, o Brasil certamente será um dos poucos países a concluir o Plano Nacional no prazo estimado. No projeto serão estabelecidas diretrizes e metas para os próximos 15 anos. Entre elas, a redução de pelo menos 10% das perdas com o sistema de abastecimento, implantação e funcionamento de conselhos estaduais de recursos hídricos em cinco anos e conclusão do Cadastro dos Usuários dos Recursos Hídricos. Cruzando os dados levantados será possível, ainda, saber o quanto é retirado de cada bacia hidrográfica e quem é o responsável pelo consumo. As informações permitirão fazer um planejamento de longo prazo e evitar o colapso de mananciais. "O planejamento possibilitará também o estabelecimento de prioridades, economizar recursos e orientar os setores da economia a compatibilizar o uso da água", adianta Senra. O cadastramento da bacia do Paraíba do Sul foi feito em caráter piloto. Neste momento, está em andamento o da bacia do São Francisco. O gerente do Departamento de Tecnologia de Águas Superficiais e Efluentes da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), Eduardo Mazzolenes, diz que o sistema de informação da bacia do Paraíba do Sul ainda está sendo produzido, mas que a União já iniciou a cobrança de uma taxa aos usuários que captam mais de um litro de água por segundo. O usuário paga R$ 0,008 pela captação de cada metro cúbico excedente e mais R$ 0,002 por metro cúbico evaporado. Outros R$ 0,02 são cobrados por cada metro cúbico de efluente não tratado. Em 2003, o governo federal arrecadou R$ 5,8 milhões e, em 2004, R$ 6,33 milhões. Este ano, o montante já chega a R$ 1 milhão. Estes recursos são reinvestidos na própria bacia. Recolhem a taxa as empresas de saneamento, indústrias de mineração e fazendas que utilizam o rio para abastecimento animal. Vale destacar que os demais brasileiros não pagam pela água que chega nas torneiras. Na conta de água, paga-se pelos serviços de captação, tratamento e distribuição. Na bacia do São Francisco, o cadastramento está em fase inicial. Segundo o coordenador da área de apóio à produção da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), Ubirajara Coelho, a partir do levantamento será possível fazer previsão de safra, direcionar melhor a aplicação dos recursos públicos e verificar se a quantidade de água retirada não implicará de forma negativa na geração de energia. Concluído o Plano Nacional, os governos federal, estadual e municipal terão condições de traçar um plano estratégico para reduzir a desigualdade de distribuição de água. Hoje, há fartura no Amazonas, escassez no semi-árido, poluição e racionamento nas regiões metropolitanas, segundo informações da Agência Nacional de Águas (ANA). Para o presidente da entidade, José Machado, o conflito vem se agravando em algumas regiões metropolitanas, onde são registrados constantes racionamentos. "São Paulo, por exemplo, enfrenta escassez porque o sistema de abastecimento Cantareira é incapaz de atender a demanda. É preciso pactuar o uso da água para evitar o desperdício. Já no Amazonas, nada de grave ameaça a bacia, mas há uma forte preocupação com a poluição das cidades nos países onde nasce o rio", argumenta Machado. Ele alerta que ainda é necessário ter mais consciência do quanto a água é importante para o desenvolvimento do país e sensibilidade para perceber que é preciso racionalizar o uso para evitar riscos. Para a professora da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) Mônica Porto, o Brasil enfrenta conflitos, mas há motivos para comemorar o Dia Mundial da Água. Ela considera que os avanços registrados nos últimos dez anos são significativos. "Estamos bem melhor na parte de organização do sistema, gerenciamento e gestão dos recursos hídricos. Não avançamos mais porque a questão é complexa e demanda investimentos altos, entre R$ 40 bilhões e R$ 50 bilhões, para resolver problemas como poluição, saneamento básico, tratamento dos esgotos e rios", sustenta. Mônica Porto lembra que os Estados Unidos, que são potência econômica, investiram US$ 180 bilhões ao longo de 25 anos para conseguir sanar os problemas dos recursos hídricos e que, portanto, dificilmente o Brasil resolverá o seu em um prazo inferior. "O país despeja esgoto nos rios, coleta menos de 60% e trata cerca de 30%. Não acordamos tarde para buscar solução para o conflito. Falta dinheiro para grandes investimentos", completa. Ela aponta as empresas de distribuição de água - tanto públicas quanto privadas - como vilãs do desperdício. E é exatamente para conter o desperdício e evitar acidentes que o Ministério da Integração Nacional lançou um programa nacional de cadastramento das barragens. Segundo informações do Ministério, em 2002, foram registradas diversas ocorrências de pequeno porte. Já em 2003, houve o acidente com a barragem de rejeitos industriais de Cataguases, que causou impacto negativo no meio-ambiente e deixou sem água 600 mil pessoas por cerca de um mês. No ano passado, o excesso de chuva e a falta de manutenção de infra-estrutura hídrica provocaram a ruptura de mais de 400 barragens, causando mortes, além de danos materiais, ambientais e sociais à região. Segundo o coordenador do Proágua Semi-árido do Ministério da Integração Nacional, Rogério Menescal, o cadastramento foi iniciado em abril do ano passado e tem como alvo as 30 mil barragens, 10% do total, que concentram o maior volume de água e oferecem maior risco à população, caso reparos na infra-estrutura não sejam realizados. Todas as capitais e municípios receberam um manual de preenchimento da ficha de cadastro da barragem. Nas situações em que o governo federal é alertado sobre riscos iminentes, a defesa civil é acionada de imediato. "É um trabalho permanente. Os municípios demoram muito a mandar as respostas. O Ministério estuda mecanismos para estimular o envio imediato do cadastramento", destaca. Se de um lado o governo avança na questão da gestão e gerenciamento dos recursos hídricos, na outra ponta, a dos consumidores, é possível afirmar há um aumento na conscientização de que é preciso racionalizar o uso da água. Pesquisa Ibope Águas no Brasil: A visão dos brasileiros, encomendada pela entidade ambientalista World Wildlife Fund (WWF), mostra que 65% dos entrevistados admitem que poderiam gastar menos água em casa e 88% consideram que o país poderá enfrentar problemas por causa da maneira como os brasileiros utilizam a commodity. Para 44%, o desperdício é o principal fator que pode agravar o abastecimento e 46% admitem pagar uma pequena quantia, além da que já é paga hoje, para garantir uma água de melhor qualidade. A pesquisa revela também que quanto maior é a renda e a escolaridade dos entrevistados, menor é a preocupação com o consumo e disposição em ajudar a resolver o problema. Mais: o brasileiro demonstra uma visão distorcida quanto aos responsáveis pelo maior consumo de água. Eles apontam a indústria como maior consumidor, quando na verdade a agricultura é que consome 70% dos recursos utilizados.