Título: Especialistas temem ação precipitada
Autor: Rosangela Capozoli
Fonte: Valor Econômico, 22/03/2005, VALOR Especial, p. F2

É a primeira vez que prometem tanto dinheiro ao Velho Chico, como é conhecido o rio São Francisco, que nasce em Minas Gerais e vai desaguar na divisa dos Estados de Sergipe e Alagoas. Serão R$ 4,5 bilhões em canais e adutoras que pretendem integrar a bacia do São Francisco às bacias dos rios do Nordeste Setentrional. O megaprojeto vai levar água para 12 milhões de pessoas e beneficiar pequenos proprietários e agronegócios numa área equivalente a 30 milhões de hectares. O projeto é conhecido há décadas como a "transposição do rio São Francisco". Desta vez, tornou-se prioridade do governo atual que finalmente promete leva-lo a cabo. Mas não será ainda agora que haverá um consenso sobre a transposição, embora os recursos sejam os maiores já alocados para um projeto individual no governo Lula. Os adversários são muitos. Há quem defenda a implementação por etapas, os céticos que não vêem na transposição das águas resolução para o problema da seca e aqueles que alertam para um aumento do custo da energia elétrica com a queda no volume das águas do Velho Chico. Outros vão além ao questionar o risco de se fazer grandes canais cortando o semi-árido e afirmam: existe a possibilidade de a água não chegar ao destino final podendo haver "roubo pelo caminho". Sem uma administração eficaz, haverá o que os técnicos preferem chamar de "desvio não autorizado". O governo não arreda pé. Faz contas e afirma que os R$ 4,5 bilhões equivalem apenas ao custo social de duas secas. Frisa que o projeto pretende captar 1% da água que o rio joga no mar, o equivalente a 23 metros cúbicos por segundo, para o consumo humano e animal. Para reforçar sua tese, traça um paralelo com a barragem de Sobradinho: apenas quando a barragem estiver cheia é que o volume captado poderá alcançar até 114 metros cúbicos por segundo, o correspondente a 2,5% do que vai para o oceano. Descarta que o rio não tenha fartura suficiente de água necessária à operação do projeto, em época da vazante, e faz vistas grossas a um aumento do custo da energia, conforme alegam técnicos e especialistas. Segundo Pedro Brito, economista e chefe de gabinete do Ministério da Integração Nacional e da Coordenação Geral do Projeto São Francisco, a Agência Nacional das Águas (ANA), responsável pelas outorgas de água, garante que o São Francisco dispõe de água suficiente para sustentar o projeto. Questionado sobre o elevado custo da água a ser cobrado dos usuários quando o projeto entrar em operação, Brito responde que está estimado em R$ 0,11 por metro cúbico. "Em Múrcia, na Espanha, onde se fez a integração do rio Tajo, o custo da água é de 15 centavos de euro, ou seja, quatro vezes mais". "A energia irá encarecer bastante, porém ainda é prematuro falar em índices", admite José Ailton de Lima, diretor de engenharia e construção da Companhia Hidrelétrica do São Francisco. O engenheiro parte do princípio de que, apesar da elevação da tarifa pública, ainda assim "a água é um bem insubstituível". "Essa é a melhor alternativa para o tamanho do projeto." Ferrenho defensor da transposição do Velho Chico, o diretor enfatiza que a "interligação das bacias possibilitará o gerenciamento dos recursos hídricos das águas do Nordeste Setentrional por não serem distribuídas de maneira homogênea". Técnicos e especialistas que participaram do Encontro Internacional sobre Transferência de Água entre Grandes Bacias Hidrográficas e que se debruçaram sobre as questões que envolvem o projeto de transposição das águas do São Francisco em agosto de 2004, elegeram alguns assuntos para serem debatidos, além de elaborarem um documento. As duas grandes abordagens trataram do balanço hídrico e o meio ambiente e aspectos sócio-econômicos e institucionais. O estudo aponta, entre outros fatores, que o potencial total de geração de energia em operação na bacia do São Francisco é avaliado em 10.484 MW. Deste total, 95% situa-se no terço inferior da calha do São Francisco, abrangendo as usinas hidroelétricas de Sobradinho, Itaparica, Moxotó, Complexo de Paulo Afonso e Xingó. Esta última responde por 30% da geração de energia e está a 200 km da foz. Isso significa que cerca de 75% das vazões do rio vêm de Minas Gerais, ou seja, a abundância da água em qualquer trecho a montante do Xingó: 92% dos 2.700 km de calha do Velho Chico provocarão sim impacto na geração da energia. O documento reforça que praticamente todo o potencial de geração de energia da calha do São Francisco já foi explorado. A potência instalada gera anualmente em torno de 50 milhões de Mwh para o atendimento da demanda do Nordeste. Essa demanda cresce ao redor de 2% acima do PIB nordestino. Para se ter uma idéia, em 2003 o crescimento nacional fechou negativo enquanto naquela região subiu 2,7% do PIB regional. Se a estimativa do governo de crescer 4% ao ano se concretizar poderá significar aumento da demanda anual superior a 6%. De acordo com o documento elaborado, no prazo de 12 anos será necessário dobrar a oferta de energia no Nordeste. Ou seja, em 2016 serão precisos na região entre 90 e 100 milhões de Mwh para atender a demanda. Os técnicos afirmam que independentemente da variação de água para outros usos necessita-se de soluções efetivas para esse atendimento de energia. Os profissionais da área propõem ao Nordeste a adoção de uma abordagem integrada das questões ligadas aos recursos hídricos na região. A idéia é priorizar a utilização desses recursos locais, mais fáceis e baratos, como os programas estaduais e federais em andamento (o Pro água e outros), levando-se em conta os diversos cenários de projeções de demanda e a capacidade gerencial dos Estados, entre outros fatores. O documento sugere que a adoção dessa estratégia poderá, de acordo com o desenvolvimento da região, levar à adequação do projeto no futuro, mas não neste momento. Em contrapartida, o governo teria uma redução dos custos do projeto, um ganho de tempo para o amadurecimento da gestão dos recursos hídricos nos diversos Estados, além de minimizar as diversas incertezas relativas à transposição. Lima, ao contrário, prega que Sobradinho e Tucuruí são reservatórios complementares que atendem à demanda de energia, enquanto o projeto permitiria aos rios da região constante fluxo com a injeção de um volume que os tornaria perenes. A integração das bacias permitirá sinergia hídrica, ou seja, grande parte da água dos açudes que hoje se perde pela evaporação, nos anos secos, ou pelo vertimento, nos anos chuvosos, será aproveitada constantemente para diferentes usos, segundo ele. Desta forma, os açudes não teriam necessidade de se manterem cheios na expectativa de que o próximo ano será de seca. Uma vez recarregados pela água pluvial, as bombas do projeto seriam automaticamente desligadas e religadas em momentos de necessidade, nas temporadas de seca. "Essa é a grande inovação do projeto São Francisco. Ele é de segurança hídrica para o Nordeste Setentrional", defende. Ennio Candotti, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que também participou do encontro e da elaboração do documento sobre a transposição do rio, diz que o fato de haver ressalvas ao projeto não se traduz em ser contrário à idéia. "Não somos contra a transposição, mas muitos pontos ainda precisam ser discutidos. Havendo água e energia ninguém é contra. Mas importante é avaliar, por exemplo, quanto será gasto com o projeto todo. Eles também precisam de escolas e saneamento", completa, referindo-se às necessidades dos moradores ribeirinhos. Assim como José Almir Cirilo, professor da Universidade Federal de Pernambuco, que também participou da elaboração do documento, Candotti é da opinião que "existe água suficiente na região". "A questão é o mau gerenciamento. Não está esgotada a possibilidade de alcançar o mesmo objetivo através dessa melhoria no gerenciamento." Já o professor da Universidade Federal de Pernambuco afirma que "o eixo Leste é o mais coerente e o mais justificável do projeto, porém, isso poderia ser resolvido através de adutoras como é o caso de Sergipe, sem esse gigantesco projeto". A espinha dorsal do projeto é sustentada por dois canais, um na direção norte, outro na direção leste, até os açudes estratégicos já existentes em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. A partir desses açudes, e por meio de rede de adutoras já construídas ou em construção, abastecerão pequenas, médias e grandes cidades daqueles Estados, permitindo ainda a irrigação nas terras de cultivo. "O ramo Norte tem finalidade marcadamente agroindustrial e o Leste utilização social mais ampla. Não está provado que o Norte será economicamente vantajoso, tendo em vista que o benefício está focado apenas na agroindústria", ressalta o presidente da SBPC. Ele questiona quem pagará a conta do projeto industrial, uma vez que beneficia um número restrito de usuários. "Será a União", desconfia Candotti. Sua sugestão é que se dê "o melhor uso possível à água já existente". Além de todas as ressalvas, José Almir Cirilo, professor da UFPE, alerta para outro fato preocupante: a administração do projeto. "A construção de grandes canais cortando o semi-árido é muito arriscada. Existe a grande possibilidade de a água não chegar ao destino final, podendo sofrer um desvio não autorizado", lembra. Outro fator é que para um projeto desta grandeza seria necessária grande eficiência na conservação. "Na Califórnia, nos Estados Unidos, os canais são extremamente protegidos e, ainda assim, são ameaçados de desvio de água o tempo todo", ressalta. Com relação à irrigação com a água do Velho Chico nos Estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, "não existe nenhum segurança nos estudos quanto à viabilidade econômica", segundo Cirilo. "Cerca de 75% da água nesses Estados serão destinados à irrigação e aí nasce a grande desconfiança: é viável a irrigação a essa distância e a custos tão altos?", pergunta o professor. Cirilo não abre mão de sua tese segundo a qual o método mais eficaz e seguro no momento seria "a integração das fontes hídricas dos grandes reservatórios para uso efetivo na irrigação". "Só após essa integração teríamos certeza da necessidade ou não de levar água exterior para a região." Segundo o Plano Diretor para o Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Planvasf), a região tem 30 milhões de hectares de terras aptas à agricultura irrigada. Considerando uma distância máxima de 60 km da fonte de água e uma elevação máxima de 120 metros, o potencial irrigável da região ficaria próximo a 8,1 milhões de hectares. O estudo aponta que uma irrigação deste porte já seria suficiente para consumir uma vez e meia toda a água produzida pela bacia. Asit Biswas, especialista internacional em recursos hídricos, comenta em vários artigos que a transferência de água entre bacias pode apresentar problemas que diferem da magnitude de um projeto a outro. Ele salienta que três aspectos devem ser considerados: sistema físico (quantidade de água); sistema biológico (ambiente aquático) e humano (produção). De acordo com Biswas, "a oposição para transferência de água em projetos interestaduais e internacionais tende a aumentar cada vez mais. (...)A ação de transferir água de um país para o outro ou entre Estados raramente se consegue sem controvérsia."