Título: Campanha quer evitar milhões de mortes do mundo
Autor: Marcos Coronato
Fonte: Valor Econômico, 22/03/2005, VALOR Especial, p. F3

O Dia Internacional da Água, 22 de março, é celebrado desde 1993, sempre com um grande evento sobre o tema. Este ano, ele marcará o lançamento da Década de Ação Internacional, para a qual a Organização das Nações Unidas (ONU) deu o mote de "Água para a Vida" - muito preciso, já que a água em falta ou de má qualidade mata no mundo 1,6 milhão de crianças com menos de cinco anos a cada 12 meses. Uma das principais metas da campanha global é reduzir essa tragédia em dois terços até 2015. Outros objetivos são reduzir à metade o número de pessoas sem acesso a água de boa qualidade (1,1 bilhão, atualmente) e a instalações sanitárias (2,6 bilhões). "Estamos enfrentando uma crise de gestão de recursos hídricos", diz Celso Schenkel, coordenador de Meio Ambiente no Brasil da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco). "O problema é o uso de métodos inadequados para lidar com a água, principalmente em regiões pobres, que sofrem com a oferta baixa e de qualidade ruim." Órgãos multilaterais, governos e entidades da sociedade civil tentarão transformar a década em um período de ação. Para isso, estão programados até o próximo ano 97 eventos internacionais. O 4º Fórum Mundial da Água, marcado para 3 de março de 2006, na Cidade do México, deverá definir compromissos, uma vez que a crise da água ainda não gerou nada nos moldes do Protocolo de Kyoto, com metas conjuntas para combater o problema. "Não há uma convenção internacional da água", diz Schenkel. "Esperamos é que os países assumam os compromissos em suas políticas". O lançamento de mais uma campanha da ONU não motiva muito otimismo. Conferências internacionais sobre o tema ocorrem desde 1977, os anos 80 foram a Década da Água Potável e do Saneamento e 2003 foi o Ano Internacional da Água. Os resultados foram desanimadores. Embora 1 bilhão de pessoas tenham tido acesso a instalações sanitárias desde 1990, o aumento da população global e a piora das condições em alguns países anularam parte do resultado - o índice de difusão de serviços de esgoto cresceu pouco, de 54% para 58%. Segundo a Unesco, mantido o ritmo, ainda haverá 2,4 bilhões de pessoas não atendidas em 2015. O ideal seria dobrar esforços e alcançar 1,9 bilhão de pessoas em dez anos. Um dos principais resultados da mobilização internacional, até hoje, foi a criação de técnicas e indicadores que permitem avaliar o tamanho da ameaça. Um Projeto Hidrológico Internacional funciona desde 1975 e constatou redução nos volumes de grandes rios como o Amarelo, na China (que começou a secar todos os anos em 1985); o Ganges, na Índia; o Nilo, no Egito; e o Colorado, nos Estados Unidos. O nível de lençóis freáticos na China e na Índia diminui 1,5 a 2 metros por ano, levando a ONU a concluir que o suprimento de água por pessoa pode cair um terço até 2020. Se o problema não for confrontado mais duramente, é provável que em 2050 a falta de água afete 2 bilhões de pessoas em 48 países. Já num cenário pessimista, a catástrofe chegaria a 7 bilhões de pessoas em 60 países. O mais recente relatório global sobre a situação, de 2003, diz: "De todas as crises de recursos que a humanidade enfrenta, por causas sociais e naturais, a da escassez de água é a mais ameaçadora à nossa existência." A campanha internacional espera abrir várias frentes de atuação. Uma é minimizar as já chamadas "guerras da água", que tendem a eclodir cada vez mais neste século. Já houve 500 conflitos por esse motivo nos últimos 50 anos. Em março, dois congressos ocorrerão na Alemanha e na Tailândia para discutir a administração de mananciais em regiões de fronteira. Mas a frente prioritária é a de investimento e financiamento. O cumprimento das metas da Década de Ação Internacional exigirá aumento de pelo menos US$ 20 bilhões anuais para garantir que pessoas consigam matar a sede, fazer sua higiene e cozinhar, numa estimativa comedida. Cálculos pessimistas chegam aos US$ 60 bilhões. No caso das instalações sanitárias, o investimento adicional seria de US$ 10 bilhões a US$ 20 bilhões por ano nos países pobres. O retorno é de US$ 3 a US$ 34 em ganhos econômicos, sociais e ambientais a cada dólar investido. A expectativa dos benefícios, porém, não resolve o problema da falta de dinheiro. Ajuda internacional será vital para muitos países, principalmente na África subsaariana. Para tentar obter o máximo resultado com os recursos disponíveis, a ONU está mapeando projetos interessantes ao redor do mundo. Entre eles, oferta de microcrédito para construção de instalações sanitárias em residências pobres, criação de sistemas de reutilização da água e treinamento de mão-de-obra para construção e manutenção de latrinas e fossas. O Brasil é pioneiro em sistemas de saneamento condominiais ou modulares, com estrutura mais flexível e barata que a convencional. O papel do setor privado no processo ainda é um tema em aberto. Relatório da ONU escrito em dezembro considera potencialmente valiosas as parcerias público-privadas (PPP) em água e esgoto, mas ressalta a necessidade de supervisão rigorosa do governo sobre os termos dos contratos e seu cumprimento. Outro relatório, encomendado pela ONU a 15 organizações representantes da sociedade civil, mostrou ceticismo de vários setores diante da contribuição que as empresas teriam a dar. A Organização das Mulheres pelo Meio Ambiente e Desenvolvimento, por exemplo, afirmou que o setor privado tem entrado com menos de 5% nas PPP em andamento no mundo, que a desregulamentação dos setores de água e esgoto aprofundou a pobreza e que as privatizações não foram acompanhadas de transparência e responsabilização dos novos proprietários. Representantes de povos indígenas pediram que FMI e bancos multilaterais regionais parem de cobrar privatizações e lucratividade no setor. A Confederação Internacional de Sindicatos sugeriu que as ações da ONU voltem a reforçar a regulamentação do setor e a propriedade pública dos serviços. O setor empresarial, representado pela Câmara Internacional de Comércio e pelo Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, reivindicou regras estáveis, previsibilidade e condições de financiamento.