Título: Uma reserva invejável debaixo da terra
Autor: Denise Ramiro
Fonte: Valor Econômico, 22/03/2005, VALOR Especial, p. F4

O brasileiro se orgulha quando ouve falar da riqueza e diversidade dos recursos naturais do país. Vegetação abundante, praias paradisíacas e rios a perder de vista são alguns dos tesouros que todos conhecem. Mas nem todos sabem que não é só o que se vê a olho nu que faz do Brasil um país especial. Boa parte do subsolo brasileiro guarda um dos bens mais caros à humanidade: água. Muita água. Um dos maiores reservatórios de água doce subterrânea do planeta está predominantemente concentrado no Brasil. É o Aqüífero Guarani, que abrange 1,2 milhão de quilômetros quadrados, ou mais de 10% do território nacional. Grande parte dessa extensão, cerca de dois terços do total, passa por oito Estados brasileiros. O restante pega três países do Mercosul: Paraguai, Uruguai e Argentina. O aqüífero é uma espécie de recheio de um sanduíche de rochas permeáveis, que concentram grande quantidade de água. O valor das reservas subterrâneas, em um sistema aqüífero, está na qualidade da água. Por estar sob o solo, ainda não é poluída. Boa parte da água que sai dali pode ser consumida sem tratamento. Processo natural de filtragem do subsolo garante a qualidade da água a um custo bem mais barato. Segundo o professor de Hidrogeologia da Universidade Federal do Paraná Ernani Francisco da Rosa Filho, tratamento de águas subterrâneas rasas chega a ser 80% mais barato do que o das de rios, lagos e represas. Alguns poços do aqüífero Guarani produzem 1 milhão de litros de água por hora, suficientes para abastecer diariamente uma cidade de 120 mil habitantes, com consumo per capita diário de 200 litros, bombeando 24 horas. Mais de 60% das cidades brasileiras são abastecidas por águas subterrâneas. Muitos total ou parcialmente abastecidos pelo Guarani, como Ribeirão Preto (SP), onde 100% da água usada vem do aqüífero. Seus 600 mil habitantes têm o privilégio de tomar banho, lavar a louça ou o carro com água mineral. Isso é possível porque as águas do Guarani que passam pela região são menos profundas, portanto, de acesso mais fácil. A água vem de 100 poços e o tratamento é simples, com poucas doses de cloro e fluor. Tal regalia, porém, já desperta a atenção das autoridades locais. O superintendente do Departamento de Água e Esgoto de Ribeirão Preto (Daerp), Darvin José Alves, alerta para o fato de que hoje, com o crescimento da população e o desenvolvimento da agroindústria na região, a água está ficando mais longe da superfície. Segundo ele, nos últimos anos houve um rebaixamento do aqüífero da ordem de 30 a 40 metros, o que significa mais custo para puxar água. Por isso, explica Alves, o Daerp está fazendo uma campanha de conscientização para pedir à população que economize água. Para ele, o problema é a demanda estar crescendo mais rapidamente do que a capacidade de recarga dos poços por meio da água da chuva. Apesar de admitir as vantagens econômicas no abastecimento de água do aqüífero, Alves diz que o sistema também tem custos altos. "Perfurar e manter os poços é muito caro, bem como a energia elétrica usada para manter equipamentos funcionando sem parar, que garantem o abastecimento ininterrupto à população", explica. Outra preocupação do Daerp são os poços clandestinos. Segundo Alves, eles somam número igual ou maior do que os legais. Estudiosos do assunto também alertam para o risco de contaminação do aqüífero, principalmente nas áreas urbanas, sujeitas à contaminação de efluentes industriais. É o caso de Ribeirão Preto, diz o professor Ernani, onde a área de reposição de água, que é onde a água da chuva entra para alimentar o aqüífero, fica muito próxima da cidade. Especialistas chamam a atenção ainda para a necessidade de se quebrar um mito sobre o Guarani. Mesmo farto, não basta para resolver o problema de falta de água que ameaça o Brasil e o resto do mundo, adverte Ernani. Ele explica que no caso do Brasil só de 20% a 30% da água do aqüífero é própria para o consumo humano, o resto precisa ser tratado. "É mito achar que o Guarani é a solução de abastecimento para o Brasil e os países do Mercosul", avisa. Segundo Ernani, cerca de 70% da água do Guarani precisa ser tratada para consumo humano, o que requer investimento pesado. "Tecnologia só é barata quando tem demanda", lembra ele. Mas as águas do Guarani não são usadas apenas para matar a sede de quem vive sobre elas. Muitos usufruem de suas propriedades medicinais e temperaturas altas, que podem ir aos 50 graus centígrados em locais mais profundos, para tratamentos terapêuticos. Estâncias hidrotermais usam as águas do Guarani para oferecer lazer e terapias aos seus hóspedes. As indústrias também usam as águas aquecidas do Guarani em seus processos de produção, o que lhes confere boa economia de gastos com energia. O aqüífero dá de beber, garante diversão e apóia a produção industrial do país. Faz sua parte. É preciso retribuir.