Título: Estratégias e desafios do comércio exterior (V)
Autor: Ricardo Sennes e Alexandre de Freitas Barbosa
Fonte: Valor Econômico, 21/03/2005, Opinião, p. A12

Brasil e México - únicos países latino-americanos que lograram ingressar na etapa difícil de substituição de importações, segundo a terminologia cepalina - seguem desde os anos noventa trajetórias cada vez mais distintas. O México jogou todas as suas fichas no Nafta: 89% das suas exportações destinam-se aos Estados Unidos, boa parte das quais são de produtos manufaturados, e geralmente vinculadas a empresas multinacionais, especialmente nos setores automotivo e eletroeletrônico, que concentram as principais "maquiladoras". Assim se explica boa parte do crescimento médio anual de 10% das exportações mexicanas pós-1995. Por outro lado, se é verdade que o superávit comercial do México com os Estados Unidos saltou cerca de 10 vezes entre 1990 e 2002, o déficit comercial mexicano com o resto do mundo cresceu mais ou menos no mesmo ritmo, mais do que compensando o desempenho positivo com o seu vizinho do norte. Esta opção pela integração via Nafta, se permitiu o acesso forte e duradouro no maior mercado do planeta - ainda que a ameaça chinesa não seja desprezível -, trouxe como conseqüência a desarticulação de algumas cadeias produtivas. Já o Brasil representa um caso de integração ao mercado mundial fundamentalmente distinto do mexicano. Respondendo europeus e norte-americanos por 50% do comércio exterior brasileiro, o país manteve e até aprofundou nos últimos 15 anos - especialmente no pós-desvalorização de 1999 - seu leque de relações comerciais, com destaque para a América do Sul e outros parceiros não-tradicionais. As exportações cresceram a um ritmo bem menor do que no México, mas a nossa pauta de exportações mostra-se mais diversificada por incluir produtos agrícolas e manufaturados de vários tipos. Mais recentemente o Brasil tem aumentado o seu quantum de exportação de produtos industrializados de forma consistente, o que se deve ao fato de que logramos manter e até aperfeiçoar alguns elos de nossa cadeia produtiva, apesar da combinação câmbio valorizado/juros elevados/demanda reprimida predominante no período 1995-1998. Estas diversas "opções" de inserção externa trouxeram vantagens e desvantagens para ambos os países. Do ponto de vista do presente artigo, interessa-nos mostrar como a separação dos caminhos permitiu um encontro mais à frente, em termos de ampliação dos fluxos de comércio e investimentos. Comparando 2004 com 1998, percebe-se que as exportações brasileiras para o México cresceram cerca de 300%, enquanto as importações mexicanas decresceram 28%, permitindo nos extremos do período analisado um salto do superávit comercial de US$ 19 milhões para US$ 3,2 bilhões. No ano passado, o México representou o terceiro maior resultado comercial do Brasil, perdendo apenas para os Estados Unidos e a União Européia. Como explicar tal desempenho fantástico? A mudança cambial provavelmente explica parte da história. O fato de possuírem estruturas produtivas semelhantes, que passaram por reestruturações de cunho diverso, explica uma certa dose complementaridade industrial. Mas é importante ressalvar que esta encontra-se em grande medida acionada pelas decisões das empresas multinacionais. Senão vejamos. As exportações brasileiras do setor automotivo (incluindo autopeças) multiplicaram-se por quase 7 vezes no período 1999-2004. Este setor, que participava com 25% das exportações brasileiras para o México em 1998, atingiu a marca dos 50% em 2003. E ainda que as exportações de autopeças do Brasil para o México sejam relevantes, 80% das nossas exportações setoriais estão concentradas nos automóveis de passageiros. Entre 1998 e 2004, o superávit comercial de automóveis de passageiros cresceu mais de 20 vezes, encostando na casa de US$ 1,3 bilhão no ano passado.

México representou o terceiro maior resultado comercial do Brasil em 2004, atrás apenas dos EUA e da UE.

Paralelamente, as exportações de máquinas e aeronaves apresentaram também crescimento expressivo no período recente. Hoje, estes três setores respondem por 64% das exportações para o México (e 72% do superávit comercial), cumprindo papel menos importante as vendas de soja, minérios, madeira, calçados e aço. Mas a relação não chega a ser desbalanceada. A recuperação da economia brasileira permitiu uma elevação das exportações mexicanas de 32% em 2004, com especial destaque para o setor eletroeletrônico e para os produtos químicos orgânicos, que experimentaram uma elevação de 71% e 91%, respectivamente. Do ponto de vista mexicano, a integração com a economia brasileira tem se dado principalmente no plano produtivo. A experiência cotidiana com o mercado norte-americano tornou as empresas líderes mexicanas mais agressivas como investidoras internacionais. Assim se explica que o estoque de investimentos diretos mexicanos no Brasil seja cerca de cinco vezes maior que o montante investido por firmas brasileiras. Dois pontos merecem ser ressaltados a título de conclusão. Em primeiro lugar, o intercâmbio Brasil-México foi impulsionado por um Acordo de Complementação Econômica (ACE), assinado em julho de 2002, que estipulou a redução ou eliminação de tarifas para cerca de 800 produtos, que somados perfazem um sexto do comércio bilateral. Parte importante do surto exportador pós-2003 se deve aos efeitos do acordo. Ainda que o mercado mexicano continue "fechado" para carnes, calçados e açúcar, abriu-se de forma relevante no caso do setor automobilístico. A partir de janeiro de 2003, ampliou-se a quota de 50 mil para 140 mil veículos ano, com tarifa de 1,1% ao ano. Em 2004 foram zeradas as tarifas, mas persiste uma quota, que será eliminada a partir de 2006. No setor de autopeças, as tarifas foram zeradas e as quotas sensivelmente reduzidas, definindo-se um conteúdo local de 20%. Logrou-se maior flexibilidade para o comércio intrafirmas multinacionais e se avançou rumo à definição de complementaridades produtivas em alguns setores. Isto significa que, de alguma maneira, as multinacionais já estão se movendo num cenário de crescente integração comercial e produtiva, independe da aprovação da ALCA. Em síntese, no caso em questão, na seqüência da assinatura de um acordo comercial, mas devido a um conjunto de fatores estruturais e conjunturais - câmbio desvalorizado, existência de multinacionais brasileiras com capacidade ociosa e crise argentina - verificou-se um salto das exportações brasileiras em alguns poucos setores, geralmente comandados pelas multinacionais, o que foi capaz de levar o México, com o qual até então tínhamos uma tímida relação comercial, para a terceira posição no saldo da balança comercial brasileira. E aí chegamos ao segundo ponto: a maior profundidade na integração comercial e produtiva depende de uma diversificação dos fluxos bilaterais de comércio e da maior presença de empresas nacionais, capazes de transformar as diferentes opções de internacionalização em fatores de aproximação em termos econômicos, e quiçá geopolíticos. Os "grandes" da América Latina, que sempre se miraram com desconfiança, dispõem de uma importante agenda comercial e de investimentos para ser aprofundada que, se bem-sucedida, traria melhores condições de enfrentamento aos desafios globais que ambos encontram pela frente.