Título: Uma década de erros faz Febem viver sua pior crise
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 23/03/2005, Opinião, p. A14

Apesar de todas as críticas que se possa ter ao instituto da reeleição, ela tem, inegavelmente, uma vantagem. Ao longo de dois mandatos, é possível ver, com clareza, quais são as fragilidades de uma administração. Oito anos é tempo suficiente para, no mínimo, não piorar uma situação, por mais grave que seja. O governador Geraldo Alckmin (PSDB), no governo de São Paulo há seis anos - e mais quatro como vice-governador de Mário Covas, falecido em 1999 - soma praticamente dez anos no governo. Em uma década, a política em relação a menores infratores, que já era, na época de sua posse como vice, fracassada e superada, não mudou substancialmente. Uma grave situação social como essa, sem uma nova orientação, clara e efetiva, e sem uma preocupação que não a repressiva, em dez anos chega ao limite. É isso que acontece com o sistema prisional de menores infratores - aliás, não existe outra designação para a Febem paulista, que não incorporou instrumentos de recuperação dos menores. Montada em 1973, sob uma cultura de que infração de menor (e até a própria orfandade) deveria ser tratada como questão de segurança nacional, ela manteve essa filosofia intacta nas suas unidades enormes e superlotadas. A cultura de que menor infrator e carente deve ser mantido isolado, na cadeia, sem mínimas condições para ressocialização, foi cultivada por corporações de funcionários que manipularam a carência e a revolta dos meninos; deu liberdade a grupos de extermínio encravados na própria polícia; alimentou corrupção e tortura dentro das unidades. E, fundamentalmente, fez do sistema uma fábrica de marginais que se incorpora ao sistema prisional de adultos. Dados do censo do sistema penitenciário de 2003 revelam que 15% da população carcerária do Estado de São Paulo passaram pela Febem. A reincidência nas unidades de menores chega à assustadora casa dos 19%. O pedagogo Roberto Silva, sobrevivente de um sistema que não apenas cuida de menores infratores mas também de meninos sem lar, em 1997 reuniu uma amostragem de 370 meninos órfãos, sem antecedentes criminais, que permaneceram na instituição por, no mínimo, dez anos. Deste total, 35,9% tornaram-se delinqüentes na vida adulta. Desde o governo Covas, as mudanças na Febem acabaram se resumindo a uma série de improvisações. À destruição de 14 das 16 unidades do complexo do Tatuapé, em 1992, o governo respondeu alojando os meninos na unidade Imigrantes, que antes abrigava carentes. Em 1999, com a destruição da Imigrantes, os menores foram levados à unidade Brás e a presídios, e outros para a nova unidade de Franco da Rocha. O que era provisório foi se tornando definitivo. As grandes e superlotadas unidades, condenadas por qualquer entidade de direitos humanos como inadequada à recuperação de jovens, tornou-se a única realidade. Em 1999, Covas anunciou a descentralização do sistema em unidades menores e construção de unidades no interior - de forma que os infratores pudessem manter seus vínculos familiares. Esbarrou em resistências dos prefeitos das cidades escolhidas e dos funcionários da instituição. Desde que assumiu efetivamente o governo, Alckmin vem tocando, a passos lentos, o que Covas prometeu. Na semana passada, sob pressão de sucessivas rebeliões e fugas em massa de menores infratores, anunciou mudanças maiores. No começo do ano, chegou a demitir 1.751 funcionários da instituição - o corpo funcional é considerado um dos grandes obstáculos à mudança da política. As organizações voltadas para os direitos da infância e da adolescência vêem relações estreitas entre as tentativas de mudanças do sistema e as rebeliões, que seriam incentivadas pela corporação ameaçada. Enfim, são mudanças efetivas, mas é preciso não apenas as anunciar, mas realmente implementá-las. Para isso, uma cultura impregnada no governo e na sociedade deve ser abandonada. É preocupante que o governo paulista, até hoje, figure nos relatórios de organismos internacionais de direitos humanos como infrator. Em 2003, a relatora especial sobre Execuções Sumárias da ONU, Asma Jahangir, levou junto consigo um relatório elaborado por 13 entidades de direitos humanos, que acusava o Estado de fechar os olhos à existência de grupos de extermínio, que atingiam inclusive menores, e às denúncias de torturas dentro da Febem. Nas investigações feitas por esses grupos, constatou-se que a tortura é uma rotina. Esses jovens convivem com a violência. Ao Estado cabe dar a eles outra referência que não seja essa.