Título: Brechas para a gastança nos Estados e municípios
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 28/03/2005, Opinião, p. A14

Os estragos provocados pela casuística Medida Provisória 237, que caiu como uma luva para prefeitos que poderiam ser punidos por descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, serão bem menores do que os causados pela brecha aberta nos limites de redução do endividamento dos Estados e municípios. A disputa barulhenta entre PSDB e PT fez com que o primeiro tema encobrisse o segundo, mais relevante e de efeitos mais duradouros e perniciosos que eventuais deslizes de prefeitos a respeito de obscuros créditos do Reluz. A interpretação dada pelo governo federal sobre o escalonamento estabelecido para que se chegue aos limites fixados para o endividamento de Estados (duas vezes a receita líquida corrente) e prefeituras (1,2 vez) fere o espírito do artigo 31 da Lei de Responsabilidade Fiscal, cujo objetivo é alcançar o gradual enquadramento dos débitos ao fim de 15 anos. O governo se inspirou em parte do texto da Resolução 40 do Senado, que estabeleceu os parâmetros para as dívidas e a forma de alcançá-los. O parágrafo único do artigo 3º estabelece que o artigo 31 da LRF só será aplicado após o prazo para a adequação aos limites, isto é, "ao final do décimo quinto exercício financeiro", em 2016. A mesma resolução do Senado, porém, é também clara ao determinar que, de 2001 a 2016, o excedente em relação aos limites previstos apurado ao final do exercício "deverá ser reduzido, no mínimo, à proporção de 1/15 (um quinze avos) a cada exercício financeiro". A conseqüência da interpretação dada pela União é que a punição para quem descumprir a redução gradativa se restringirá à proibição da contratação de crédito. O artigo 31 estabelece que, nestes casos, os infratores perderiam direito também às transferências voluntárias (exclusive repasses para educação e saúde, que compõem o grosso delas). Para os grandes devedores, como a Prefeitura de São Paulo e Estados como os de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, a punição pelo descumprimento do enquadramento intermediário, ano a ano, tornou-se irrelevante, porque pela renegociação das dívidas já feita com a União eles não poderiam fazê-lo. Eles se livram de penas maiores, como as da lei de crimes fiscais, que prevê pena de reclusão de até um ano para governadores ou prefeitos "quando o montante da dívida consolidada ultrapassa o limite máximo autorizado por lei." A situação é inusitada: uma resolução do Senado adia os efeitos de artigos de uma lei complementar, que já entrou em vigor, por pelo menos dez anos. A conseqüência prática é igualmente singular. Como as punições plenas, com direito a prisão, só ocorrerão a partir de 2016, todas as administrações estaduais e municipais poderão estourar, como fez a prefeitura paulistana, os limites até lá. A avalanche de desajustes acumulados desaguará de uma só vez sobre prefeitos e governadores que estiverem em exercício daqui a 11 anos. Entre outras coisas, era o que o espírito da LRF pretendia evitar e que agora, ao que parece, foi abandonado. Na oposição, o Partido dos Trabalhadores se opôs à LRF. No poder, em algumas administrações de importantes capitais, não deu muita bola a ela, contando com a leniência do poder federal, sob comando de membros do partido. Mas, no limite, a interpretação do governo abre as portas para a irresponsabilidade fiscal de todos os eleitos para cargo executivos, de qualquer partido. O sinal emitido é péssimo e significativo, pois ocorre no primeiro ano em que a LRF seria aplicada para as prefeituras. A oportunidade histórica de uma transição suave, ordenada e responsável para um sistema de contas públicas equilibrado para todos os entes federativos - algo inédito no país - ao que tudo indica está sendo desperdiçada. As chances de reverter essa situação são remotas. Em primeiro lugar, porque o guardião da Lei de Responsabilidade Fiscal, o próprio governo, em vez de tentar caminhos alternativos que apontassem rumo ao resgate do espírito da legislação, abdicou de fazê-lo e afiançou uma interpretação que favorece a todos. Depois, porque dificilmente os grandes partidos, que são os principais beneficiários da brecha aberta, se rebelarão contra ela. É pena que uma situação claramente conjuntural - um governo com problemas sérios para arregimentar sua rebelde base parlamentar de apoio - tenha levado a um relaxamento apressado de capítulos cruciais de uma das mais importantes leis que o Congresso aprovou em décadas.