Título: França questiona Grande Europa
Autor: Philip Stephens
Fonte: Valor Econômico, 28/03/2005, Opinião, p. A15

Ao visitar Paris, é possível constatar o clima de apreensão entre a classe política francesa. Em pouco mais de dois meses, a França irá votar para decidir se ratificará o Tratado Constitucional da União Européia (UE). Poucos observadores parecem seguros de que a resposta será sim. Por trás do nervosismo, espreita o temor de uma crise mais profunda de identidade. A França já não está certa de seu lugar no mundo. Essa pode parecer uma reflexão curiosa, depois de eventos no passado recente. Afinal de contas, Jacques Chirac, o presidente francês, deu nitidez à definição do papel de sua nação no palco internacional quando se opôs à guerra no Iraque. O britânico Tony Blair acompanhou os EUA até Bagdá. A França afirmou sua independência no que Chirac declarou ser um mundo multipolar. Mesmo agora, quando os dois países procuram sanar as feridas transatlânticas e a França trabalha de mãos dadas com os EUA no Líbano, Chirac insiste em que há importantes potências no mundo além dos EUA. Ele recebeu Vladimir Putin, o presidente russo. E também Gerhard Schröder, da Alemanha, e José Luis Rodriguez Zapatero, da Espanha - este último, assumindo o lugar numa tróica, na UE, há não muito tempo ocupado por Blair. A Europa, segundo os participantes do encontro, também tem sua voz. No entanto, a autoconfiança pública mescla-se a apreensão reservada. Chirac fixou para 29 de maio a realização do referendo sobre o tratado. Os números das pesquisas de opinião - sinalizando 60% a favor - sugerem que ele deverá vencer o plebiscito confortavelmente. Os políticos têm menos certeza. A opinião pública tem migrado para o campo do "não". Quando os institutos de pesquisa sondam a posição apenas dos eleitores que afirmam que irão às urnas, o resultado é de apenas 53% a favor. Há também o sempre presente perigo de que os eleitores decidam responder a uma questão distinta, encarando o plebiscito como uma chance para marcar protesto contra o governo. Tudo isso evoca ecos funestos do Tratado de Maastricht, ratificado por estreitíssima maioria em 1991. À época, como hoje, o campo do "sim" partiu com grande dianteira. Muita coisa mudou desde Maastricht. Pouco do que mudou foi bom para a França. Como membro fundador do clube, a França nunca questionou as justificativas de uma Grande Europa. Para além do objetivo imediato de reconciliação com a Alemanha, a União Européia (UE) foi o locus essencial para fazer avançar o interesse nacional francês. Exceto nos extremos políticos, a equação central não foi questionada: mais Europa é igual a mais França. Agora isso está sendo questionado. A França despertou para o fato de que a Europa ampliada para 25 membros é um cenário totalmente distinto. Se a oposição de Chirac à guerra no Iraque demonstrou a independência francesa, o posicionamento oposto de novos países membros na Europa Central e Oriental - alinhados com o Reino Unido - estilhaçou a tranqüila premissa de que a Europa estaria destinada a sempre seguir a liderança franco-alemã. A mudança envolve mais do que política externa. Muitos dos novos membros da EU compartilham os instintos econômicos liberalizadores do mundo anglo-saxão. Eles miram o exterior - visando o mercado mundial - assim como o interior - visando a integração européia. Na França, são considerados como ameaça ao modelo econômico europeu. Para muitos na esquerda, a ausência, no tratado, de uma "dimensão social" substantiva, é emblemática do perigo. Entre a esquerda organizada - sindicatos e ativistas que na semana passada puseram mobilizaram um milhão de pessoas em manifestações de protesto nas ruas contra as políticas econômicas do governo - comenta-se que o não venceria na relação de 70% contra 30%.

A divisão européia, na questão do Iraque, estilhaçou a premissa de que a UE sempre seguiria a liderança franco-alemã

O desencanto, porém, tem raízes mais profundas do que o tratado ou, a propósito, a controvérsia envolvendo a guerra no Iraque. A oposição, ao contrário, estaria no próprio fato da ampliação da UE. A Constituição proposta, afinal de contas, dificilmente pode ser considerada revolucionária. Ocorre que a classe política francesa não admitiu para si mesma nem explicou aos eleitores a mudança radical na geometria política de uma Europa de 25 países. Mais Europa poderá, agora, implicar em menos França. No pano de fundo está a Turquia, cuja eventual admissão ao clube é considerada por muitos na França como um sinal definitivo da morte do ideal original europeu. Para um observador externo, a tentação é lembrar, e retrabalhar, a ácida observação sobre as tribulações do pós-império britânico oferecidas quase meio século atrás por Dean Acheson, ex-secretário de Estado dos EUA: a França perdeu a Europa e ainda não encontrou um papel para si. Ministros franceses insistem no contrário. A finalidade da Europa é a mesma de sempre. A França pode melhor fazer avançarem seus interesses, globais, políticos e econômicos, em parceria com seus vizinhos. A aliança franco-alemã continua sendo o motor vital da União. Entretanto, como ouvi francamente admitir uma alta autoridade governamental, a aliança não é suficiente. Em vez disso, ela é "mais e mais necessária, e menos e menos suficiente". O que está faltando é uma teoria convincente de Europa, uma narrativa explicando porque a França pode liderar e prosperar na nova Europa, como o fez na velha. Um confidente próximo do presidente declara que a Constituição deve ser defendida como um início, e não um fim, de envolvimento com a Europa. A Constituição deveria constituir o balizamento para grupos muito menores de países com afinidade de posições - uma vanguarda de nações - para fazer progredir uma cooperação mais profunda. Outros anseiam por reformar as relações com Washington para dissipar quaisquer idéias de que a França ficou isolada. Michel Barnier, ministro de Relações Exteriores, também procurou fazer a França recuar do que pareceu ser o campo errado de uma discussão transatlântica sobre a disseminação da democracia no Oriente Médio e em outras regiões. A França é inteiramente a favor de liberdade, disse Barnier. Os franceses querem apenas acrescentar justiça ao pleito americano por maior liberdade e democracia. Trata-se de uma viés inteligente, ainda que um tanto comprometido pela determinação de Chirac em festejar Putin. A França não está sozinha em seu atual desconforto. Blair encontrou alguns atlanticistas com afinidade de posições na nova Europa, mas o princípio organizador da política externa do Reino Unido também sofreu uma reviravolta em decorrência de eventos recentes. Para recorrer à desajeitada metáfora de Blair, o papel do Reino Unido como ponte através do Atlântico requer uma Europa unida, e não fraturada. Na questão do Iraque, ele foi obrigado a fazer a escolha que os primeiros-ministros do Reino Unido moderno sempre tiveram esperanças de poder evitar. Há uma ironia aqui. Por temperamento, visão internacional, gama de interesses, capacitação militar e, ousemos dizê-lo, consideração por seus próprios papéis no cenário mundial, a França e o Reino Unido deveriam estar mais próximos um do outro do que qualquer outro parceiro na Europa. Franceses e britânicos efetivamente cooperam - aqui e ali. O problema é que são demasiado semelhantes para assumir seriamente causas comuns.