Título: Boi no prato
Autor: Eliana Cardoso
Fonte: Valor Econômico, 24/03/2005, Brasil, p. A2

Pneu é masculino porque fica careca. E masculino é o câmbio, pois quase sempre está sobrevalorizado. A inflação é volátil e, portanto, feminina. Diz o Duque de Mântua: "Mobile qual piuma al vento". A felicidade também. Boi no prato muda de gênero e vira carne de vaca. A "vaca atolada" se faz com cachaça e costelas de boi em pedaços aos quais se junta a mandioca. Enquanto as costelas e a mandioca cozinham juntas, o caldo engrossa. A política fiscal, que se acreditava feminina, pois andou levando uns apertos em 2003, ficou folgada em 2004. Mesmo assim, continuou feminina, graças ao parentesco com a vaca atolada na mandioca. A imprensa nos adverte de que em 2004, os gastos reais do governo federal aumentaram 18% em relação a 2003 e o caldo pode entornar. Samuel Pessoa, da Fundação Getúlio Vargas, prega mais cautela na análise dos números. O ano de 2003 não é base sólida de comparação por causa dos cortes de emergência para alcançar a meta do superávit primário. Um melhor quadro de análise se obtém na comparação dos gastos em 2004 com a média dos gastos em 2001e 2002, corrigidos pelo IPCA. Mesmo assim, é boi de cara preta. O governo federal aproveitou o aumento das receitas e elevou em 14% o total do gasto público não financeiro (exclusive investimento) em relação aos gastos reais médios em 2001-02. O alarme quanto ao aumento de gastos do governo é justificado, porque se deu com grave queda na sua qualidade. Apesar do grande aumento do gasto total, os investimentos do governo federal caíram 30% em comparação com a média de 2001-02 (quando se usa o IPCA como indexador) e 36% (quando se emprega o IGP). Vamos mal. Corte de investimento em infra-estrutura aumenta o custo-Brasil e solapa o crescimento econômico sustentável. Ao mesmo tempo, os gastos reais com servidores, aposentadoria e pensões subiram 14% em relação à média de 2001-02. Enquanto o governo anterior cortara 183 mil servidores públicos, o governo Lula já contratou mais 80 mil (até setembro de 2004). Boi solto lambe-se todo. O rápido aumento do funcionalismo é parte do projeto político do PT. Assusta pelo seu parentesco com projetos de um Estado grande e interventor. Levanta questões. A aliança com Kirchner, Chávez e Fidel - os presidentes populistas de traços autoritários da Argentina, da Venezuela e de Cuba - é apenas uma estratégia política mal-ajambrada? Ou reflete uma empatia pela estratégia econômica dos três líderes da esquerda latino-americana em crise?

A disciplina fiscal de 2003 foi fenômeno passageiro

Em 2004, a despesa social do governo federal cresceu em termos reais 42% em relação a 2001. O crescimento decorreu principalmente de três itens: aumento dos benefícios ao deficiente e ao idoso com redução da idade mínima para usufruir desses benefícios; aumento da ajuda direta no programa Bolsa-Família e crescimento dos programas de saúde. O problema aqui é que o rápido aumento dos gastos sociais tem coincidido com dúvidas crescentes a respeito de sua qualidade. O Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), divulgado em 16 de março, concluiu que o Cadastro Único utilizado na distribuição de benefícios tem fragilidades sérias. Descobriu-se que 4,4% das famílias beneficiadas pelo Bolsa-Família têm rendimento maior do que o teto estabelecido no programa. Em 2005 a farra do boi pode ganhar corpo. Projeções otimistas para a receita resultaram num Orçamento irrealista. Depois de uma revisão para baixo das receitas esperadas, o governo parece decidido a decretar um corte de gastos no valor de R$ 15,2 bilhões. Mesmo com esse corte, projeta-se um aumento das despesas primárias de 7,9% em termos reais para 2005. Mais do dobro do crescimento esperado do PIB. Joga-se fora o princípio de que, para aumentar a eficiência do setor público, seus gastos devem crescer em menor proporção que o produto. O déficit do INSS subiu 25% em 2004 não apenas por seus desajustes estruturais, mas principalmente pelo aumento do salário mínimo real. Esse fenômeno se agravará em 2005 com o aumento do salário mínimo para R$ 300 em maio. Além do efeito direto do aumento do mínimo sobre os gastos, haverá também aumento da informalidade. Não existe solução para o inchaço do gasto público enquanto a reforma do INSS não se fizer para valer, inclusive com aumento da idade mínima para a aposentadoria. Aos poucos vai ficando claro que a disciplina fiscal observada durante 2003 foi um fenômeno passageiro usado apenas para restaurar a credibilidade externa diante da enormidade do susto de 2002. Assim, o setor público perdeu uma oportunidade de ouro em 2004, pois poderia ter inaugurado a prática de superávits primários contracíclicos no país. Ao contrário, em ano de crescimento forte, o gasto público se expandiu bem mais do que o PIB. Cresce o consenso entre os economistas e formadores de opinião de que a maior ameaça à política macroeconômica de hoje é o conflito entre a expansão do gasto público - que aquece a demanda - e a política monetária apertada - requerida para esfriá-la. Essa política cria uma dinâmica perversa para a dívida do setor público. Se ela persistir por mais um ano, logo estaremos de volta à discussão da dominância fiscal na política monetária, isto é, à discussão da possibilidade de que a dívida cresça a um ritmo tal que a torne insustentável. Essa discussão, que tanto assustou os investidores em 1998 e 2002, pode chegar sem que o governo Lula disponha da arma que dava credibilidade à política fiscal no segundo governo de FHC: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). A Medida Provisória 237, ao regularizar de forma retroativa infrações legais a tetos impostos pela LRF, provou que boi amarrado também pasta. E ainda existe o risco de Severino introduzir, na Câmara dos Deputados, a LIF (Lei da Irresponsabilidade Fiscal). A uns morrem as vacas, a outros dão cria os bois.