Título: Para cortar gasto é preciso mudar regras e instituições
Autor: Cynthia Malta
Fonte: Valor Econômico, 24/03/2005, Brasil, p. A3

O Brasil, que tem sido elogiado pelo desempenho fiscal feito a partir de 1999, quando começou a vigorar o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), produziu um ajuste de má qualidade. O gasto público cresceu, o investimento caiu e as possibilidades de expansão da economia encolheram. E, pior, o ajuste se fez com base na elevação da carga tributária. Mas é possível mudar esse quadro, com redução dos gastos. A opinião é do economista Marcos Mendes, que fez doutorado na USP e é desde 1995 consultor legislativo do Senado. Ele não acredita que o governo - na gestão tucana ou petista - tenha optado por elevar impostos porque julga ser esta a melhor opção. "Ela parece ser a única opção disponível, devido à existência de diversas regras e instituições que impedem a redução e a racionalização da despesa pública". O presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Guido Mantega, quando ainda comandava o Ministério do Planejamento, já observava que o grau de vinculação entre receitas e despesas no orçamento da União ultrapassa os 90%. Sobra, então, estreita margem de manobra ao Executivo. A Previdência, por exemplo, é sempre apontada como uma grande sugadora de recursos. De fato, é a maior rubrica dentro dos gastos totais do Tesouro e carrega um "buraco" que pode chegar a R$ 37,8 bilhões neste ano, segundo cálculos dos Ministérios do Planejamento e da Fazenda. Para Mendes, e vários especialistas em finanças públicas, a saída está numa nova reforma da Previdência. Mas o governo Lula já informou que não encaminhará nessa segunda parte de seu mandato uma nova reforma, preferindo promover um "choque de gestão" - um pacote nessa linha pode ser anunciado hoje. Especialistas em finanças públicas têm observado, porém, que uma nova reforma terá que ser feita, no máximo, em 10 anos. Caso contrário, não haverá recursos suficientes para pagar aposentados e pensionistas. Os gastos com os juros da dívida pública também o preocupa. Mas Mendes considera que esses dois temas - Previdência e juros - já têm sido amplamente debatidos. Acha mais produtivo aprofundar a discussão sobre outros tipos de despesa: custeio da máquina, remuneração dos servidores ativos e as transferências a Estados e municípios. Essas despesas cresceram 47%, em termos reais, de 1995 a 2004, passando de R$ 139,4 bilhões para R$ 204,9 bilhões. "Esses números indicam que deve haver espaço para redução do gasto público mesmo fora das rubricas de juros e Previdência", diz o consultor do Senado. Ele tem notado um sentimento, justificado, "de saturação da população no que diz respeito à elevada carga tributária e ao alto custo da máquina pública." Para estudar onde e de que forma é possível cortar gastos, Mendes está convidando economistas de diversas universidades e especialistas em administração pública. A idéia é elaborar um documento, com propostas, que ficaria pronto no início de 2006, "quando estarão sendo formuladas as propostas de governo dos candidatos à Presidência da República." Um ponto que deverá ser estudado é o aperfeiçoamento da Lei de Responsabilidade Fiscal. "Essa lei exige que se aponte a receita para cada despesa nova criada. E eu não vejo essa discussão sendo feita", diz Mendes. Dá como exemplo a aprovação recente, por parte da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, do projeto de lei que dobra o grupo de idosos e portadores de deficiência aptos a receber um benefício equivalente a um salário mínimo. "Essa é uma despesa de caráter continuado e terá um impacto grande nos gastos". Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, as despesas da União com esse benefício subiriam de R$ 7 bilhões para cerca de R$ 14 bilhões neste ano se o projeto de lei for aprovado. O governo defendeu na semana passada que o projeto deve ser analisado pela Comissão de Finanças antes de ser enviado ao Senado para aprovação - o que pode ocorrer, se for seguido o regimento. O professor Paulo Arvate, da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo, é um dos economistas convidados por Mendes a discutir formas de racionalizar o gasto público. Ele discorda da visão de que o governo Lula pode relaxar a política fiscal neste ano. "Acho que o governo vai renovar o acordo com o FMI e continuará tendo metas para cumprir". O ponto principal na discussão proposta por Mendes é estudar e debater propostas factíveis de redução de despesas para que o Estado recupere o poder de investir. Para Arvate, "o governo Lula tem um viés anti-investimento. Acha que as parcerias público-privadas e o setor privado resolvem". Na verdade, diz ele, reduzir despesas com os servidores públicos ativos é possível e poderia liberar recursos para investimentos. "Não se pode cortar salário, mas pode-se muito bem cortar gratificações". Mendes lembra que "o governo FHC terceirizou diversas funções e conseguiu reduzir os gastos. E o governo Lula está querendo transformar esse pessoal em estatutário". Esse vaivém prejudica a gestão administrativa e desorganiza o planejamento. Daí a necessidade de se impor limites em eventuais mudanças pretendidas por futuros governos. A distribuição de recursos feita por meio do Fundo de Participação dos Municípios também merece revisão. "Há municípios tão pequenos, de até 5 mil habitantes, que nem conseguem investir os recursos recebidos ou investem mal. O FPM deveria ter critérios de eficiência. Por exemplo: o município receberia mais recursos se tivesse aumentado o IDH da população", diz o consultor do Senado, referindo-se ao Índice de Desenvolvimento Humano, calculado pela ONU, com base em dados como acesso a água tratada e rede de esgoto. Outro ponto que também impacta as contas do Tesouro Nacional de forma importante refere-se aos gastos dos poderes autônomos. Legislativo, Judiciário, Tribunais de Contas e Ministério Público, desde 1988, com a promulgação da nova Constituição, registram gastos crescentes. Uma vez aprovada suas propostas de despesas no Orçamento Geral da União, elas não podem ser contingenciadas pelo Executivo. "Deveríamos ter limites, na Constituição, impedindo esses aumentos no Legislativo e no Judiciário", diz Mendes. O professor Nelson Marconi, da FGV e PUC de São Paulo, lembra que Judiciário e o Legislativo - e não apenas no Brasil, mas em muitos países - costumam "puxar para cima" os gastos com pessoal e encargos.