Título: Tirania e ditadura são temas menores
Autor: Wanderley Guilherme dos Santos
Fonte: Valor Econômico, 24/03/2005, Política, p. A6

Até ontem, ou anteontem, duas medidas provisórias paralisavam os trabalhos no Congresso. Uma delas regulando tópico futebolístico importante, mas de secundária importância na vida política, econômica ou social do país. Difícil justificar a medida por razões de relevância e urgência. Enquanto isso, sobram, na fila, projetos de lei de grande impacto na vida comunitária. Existe uma tentação totalitária embutida na legislação atual. Na insistência de um convite a comportamentos discricionários, cujos condicionamentos são bastante elásticos, poucos evitam aceitá-los. Responsabilizar as inclinações pessoais do eventual habitante do Palácio do Planalto é a clássica saída pela tangente. Ocorre que, seja quem for o ocupante, boa lei é aquela cuja aplicação e conseqüências independem de quem a convoca. A legislação sobre medidas provisórias foi nociva com José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Continua a sê-lo com o presidente Luiz Inácio. A banalidade das afirmações acima corresponde à banalidade com que o recurso é administrado e à banalidade de sua recepção pelo Legislativo e pela opinião pública. Com algum esperneio, por certo, porém mais por dever de ofício do que por civismo realmente ofendido. É da natureza adaptativa das consciências que, em sendo necessário, faz a vasta maioria de todos nós conviver democraticamente até com ditaduras militares. Democraticamente, isto é, tolerando a legislação produzida em tais condições. Medidas provisórias sobre matéria de relevância e urgência não são ditatoriais; mas aquelas sobre irrelevâncias, são. A lei, mesmo imperfeita, não as autoriza. Medidas provisórias sem fundamento parlamentar consensual sobre relevância e urgência são tirânicas. Aprová-las, por rotina, implica cumplicidade do Legislativo atual com a tirania do procedimento. Nenhuma distinção, nesse particular, no contraste com o Legislativo pré 1986. Se alguma existe, a distinção favoreceria o antigo Legislativo, que operava sob coação. Além de autoritárias, medidas provisórias sobre adiáveis ninharias são também instrumentos de chantagem do Executivo. Servem para expor o Legislativo à crítica de que os parlamentares comprometem a capacidade operacional do sistema, quando, de fato, o que interessa ao governo, muitas vezes, é apressar a aprovação de leis que estão na fila de espera. A capacidade de obstrução do Legislativo fica reduzida além do que é necessário para evitar que venha a sabotar o exercício do governo - sem mencionar o recurso do Executivo de requerer o privilégio da urgência para suas propostas de legislação.

Presunção de onipotência é passaporte à incompetência

Como estilo de relação entre as instituições, a rotina atual inclina em excesso a iniciativa de governo para o lado do Executivo, embora a capacidade de negociação do Congresso permaneça razoável. Como pedagogia cívica, seus efeitos são desastrosos. Passou a fazer parte da argumentação dos grupos de interesse, fora e dentro do Parlamento, a sugestão de que suas demandas sejam atendidas por meio de medidas provisórias. Em breve a sociedade inteira vai se dar conta do modo arbitrário com que as medidas provisórias são editadas e imaginar que o governo é capaz de fazer tudo, da noite para o dia, mediante uma ou algumas medidas. Resolver o problema do saneamento e do emprego, por exemplo. Se não o faz é porque não quer. Ao contrário de educar a população quanto a prazos de maturação de políticas, escassez de recursos e a escala de prioridades, revelando que são obstáculos incontornáveis aos governos, ajuda a consagrar a ficção de que se o governo não opera a contento é porque não se importa com o problema ou porque é incompetente. A presunção de onipotência, mais do que uma rima, é sedutor passaporte para o terminal da incompetência. A sensibilidade política da opinião pública e dos parlamentares está embotada. Possivelmente, a designação do abuso de medidas provisórias como exercício de tirania arrisca ser interpretada como hipérbole. Institucionalmente, contudo, é assunto muito mais crucial do que a ladainha sobre um putativo DNA autoritário do Partido dos Trabalhadores, ao qual pertence o atual Presidente da República. A omissão relativa à tirania das medidas provisórias e o ilimitado panfletarismo da tribuna oposicionista não servem à democracia. Os deuses, quando querem enlouquecer um cidadão, transformam-no em candidato. É mais ou menos essa a paráfrase.