Título: Orçamento impositivo e divisão de responsabilidades
Autor: Aloizio Mercadante
Fonte: Valor Econômico, 24/03/2005, Opinião, p. A10

Em seus primeiros pronunciamentos, após suas eleições para as presidências das duas casas do Congresso Nacional, tanto o senador Renan Calheiros como o deputado Severino Cavalcanti destacaram a questão do "orçamento impositivo" como prioridade na pauta de deliberações da atual sessão legislativa. Penso que essa expressão não é a mais adequada. Afinal, as imposições da própria Constituição Federal, no sentido de vedar qualquer alteração na proposta orçamentária do Poder Executivo no que diz respeito a dotações para pessoal e seus encargos, serviço da dívida e transferências tributárias para os estados, municípios e Distrito Federal, bem como as determinações de gastos com a educação e saúde, praticamente engessam o orçamento. Assim, pouco resta aos parlamentares para dispor sobre a destinação dos recursos públicos. E sobre o pouco que podem dispor incide a prerrogativa do Executivo de contingenciamento, em face da natureza meramente autorizativa da lei orçamentária. O paradoxal nisso é que a história do Poder Legislativo confunde-se com a luta pelo controle do erário, tanto na arrecadação, quanto na destinação dos tributos. Em 1215, os senhores feudais impuseram a João Sem Terra a tese de que só pode haver taxação se há representação política. Aí, como sabemos, é que surge o parlamento moderno. Mais tarde, em 1688, na Revolução Gloriosa, os Stuarts são derrubados, porque, além das questões religiosas, não aceitavam que o parlamento dispusesse, também, sobre a destinação dos tributos. Vale lembrar que, em 1972, o então presidente dos EUA, Richard Nixon, foi ameaçado de impeachment pela Suprema Corte por ter determinado o contingenciamento de dotações orçamentárias, sem a devida aquiescência do Congresso. Após esse incidente, foi editado, em 1974, o Impoundment Control Act, que dispõe sobre o instituto conhecido como "rescission", ou seja, a solicitação governamental ao Congresso para que determinada dotação seja cancelada ou contingenciada.

Poder Executivo passaria a depender de autorização legislativa para fazer contingenciamentos

A tese que sustenta o discurso dos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados é a do compartilhamento de responsabilidades na formulação e execução do orçamento entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Com isso, reforçar-se-ia o mecanismo de "freios e contrapesos" (checks and balances) que caracteriza o sistema de governo presidencialista, nos moldes da sistemática norte-americana. Alguns ainda devem se lembrar do "shutdown" (fechamento) da primeira administração de Bill Clinton, quando Congresso e Casa Branca não chegaram a um acordo sobre o orçamento. É disso que se trata. Sendo impositivo o orçamento, Executivo e Legislativo são obrigados a negociar, sob pena de não se poder gastar um único centavo para que os poderes públicos possam funcionar. A discussão está mais avançada no Senado, onde se debate a proposta de emenda constitucional do senador Antonio Carlos Magalhães. O projeto quer: a) impedir o encerramento da sessão legislativa, caso o projeto de lei orçamentária não tenha sido ainda votado pelo Congresso Nacional, alterando-se, dessa maneira, o § 2º do art. 57, que impede o encerramento de sessão legislativa sem a aprovação do projeto de lei de diretrizes orçamentárias (LDO); b) determinar o detalhamento de programação de gastos por unidade da federação; c) excluir do campo de lei complementar a que alude o § 9º do art. 165 a referência a prazos para apresentação de planos plurianuais, leis de diretrizes orçamentárias e leis orçamentárias, estipulando-se tais prazos no próprio texto constitucional; d) transformar a natureza jurídica do orçamento de lei autorizativa em impositiva, configurando-se a sua não observância crime de responsabilidade (impeachment), facultando-se, porém, o cancelamento ou contingenciamento total ou parcial de dotação, mediante autorização do Congresso Nacional, a partir de iniciativa do presidente da República, nas condições estabelecidas na norma constitucional a ser estatuída; e e) vedar a inclusão no projeto e no autógrafo do orçamento anual de receitas autorizadas por leis que venham a ter vigência em data posterior ao encerramento da sessão legislativa. Cremos ser importante consignar que essas regras ainda são insuficientes e não se restringem ao orçamento da União, projetando-se, como "normas de pré-ordenamento" para os estados, Distrito Federal e municípios. Devemos evitar o nível de detalhamento de gastos por "unidade da federação", vez que os municípios também são unidades da federação, nos termos do art. 1º da Constituição Federal. Se aprovado o texto original, além de serem considerados para tais fins de especificação de despesas os 26 estados e o Distrito Federal, deveriam ser levados em conta os 5.563 municípios, o que não seria em hipótese alguma razoável. Pensamos ainda que se deva prever a progressiva implementação da nova sistemática, na forma de lei complementar. Finalmente, sugerimos extinguir a Comissão Mista de Orçamento, conforme sugerido pela CPI do Orçamento, há uma década. Nesse sentido apresentamos emendas que visam aprimorar a proposição original. De toda forma importa registrar que os debates em plenário, no Senado, têm sido do mais alto nível e prenunciam o início de um entendimento entre governo e Congresso Nacional em torno dessa questão. O encaminhamento racional dessa matéria nos permite antever um cenário mais positivo no tratamento das finanças públicas em nosso país. Bom para as nossas instituições democráticas, bom para o Brasil.