Título: Máfia do funeral
Autor: Nunes, Vicente; Martins, Victor
Fonte: Correio Braziliense, 22/03/2010, Economia, p. 10

SEGUROS PRIVADOS

Susep, órgão fiscalizador do mercado de planos mútuos e auxílios, vai colocar ordem na farra das funerárias que arrecadam contribuições e não cumprem o combinado na hora de bancar o enterro contratado

A Superintendência de Seguros Privados (Susep), órgão que regula e fiscaliza o mercado de seguros no Brasil, foi incumbida pelo Ministério da Fazenda de botar a mão em um vespeiro: trazer para a legalidade os planos mútuos ou auxílios-funerais, que prometem um enterro digno a quem pagou pelo serviço por anos a fio. Dados colhidos pelo governo mostram que 25 milhões de famílias contribuem, religiosamente, com parcelas entre R$ 10 e R$ 15 por mês a funerárias espalhadas pelo país, mas, na maioria dos casos, não há nenhum tipo de contrato garantindo o que foi acertado. Ou seja, pelo menos R$ 3 bilhões por ano estão engordando os caixas das funerárias, baseados apenas na confiança entre consumidores e empresários, sem qualquer fiscalização oficial.

Nos levantamentos realizados pelo governo, quase todo o dinheiro pago às funerárias por meio dos planos ou auxílios vai para o patrimônio pessoal dos donos das empresas. Em vez de formarem uma poupança para assegurar a prestação dos serviços quando solicitados, muitos empresários preferem comprar o carro do ano ou mesmo construir casas suntuosas, apostando que, com o fluxo de pagamentos, nunca ficarão no vermelho. A realidade, porém, é outra. O excesso de confiança e a certeza do dinheiro fácil estão levando a exageros, a ponto de empresas falirem e fecharem as portas, deixando na mão os que lhes foram fiéis por décadas.

Contrato de gaveta

A disseminação de funerárias vendendo auxílios funerais sem garantia e solidez financeira é gritante. Em Goiás, há casos em que não existem nem mesmo um carnê para comprovar os pagamentos efetuados. Um contrato de gaveta é assinado e um motoboy percorre, mês a mês, a casa dos clientes para cobrar o dinheiro do futuro enterro. Sem o motoqueiro, a inadimplência aumenta muito. Se não tomar cuidado, de 30% a 40% da carteira de beneficiários dos planos deixam de pagar. Mas o contrato (mesmo que de gaveta) é claro: se não pagar por três meses seguidos, a pessoa perde o dinheiro e o direito ao auxílio, afirma o dono da funerária Boa Esperança, Fernando Viana, localizada em Valparaíso, distante 50km de Brasília.

Viana conta que chegou a ter uma carteira de mais de 2 mil clientes, mas ela não se sustentou. Inadimplência e desistências demais impediram a continuidade do serviço. Hoje, não chega a 50 o número de beneficiários atendidos por ele. Não dá para sobreviver sem esses planos. Mas o dinheiro não vai para um fundo nem para uma conta. Vai para as coisas da funerária, diz o empresário.

Na empresa Bom Pastor, instalada no Pedregal, cidade distante 60km da capital do país, Igor Candido da Silva, o dono da funerária, montou uma carteira de 200 clientes. A mensalidade mínima é de R$ 15 os valores variam de acordo com os serviços exigidos. Por mês, são R$ 3 mil arrecadados. Isso, se todos os clientes tiverem apenas o plano mais simples e arcarem com a dívida no dia certo. Muita gente nos procura, vale muito a pena para a família não ter dor de cabeça. As pessoas pagam, no mínimo, 140 parcelas. A garantia para o cliente é a palavra do vendedor, enfatiza. Ele vai além: a depender do plano, as mensalidades podem se estender por 15 anos, para velórios que custam entre R$ 2 mil e R$ 3 mil.

Venda casada

Sem se identificar, o dono de uma empresa denuncia que as irregularidades não estão restritas às funerárias. Ele afirma que já prestou serviço para seguradoras e teve problemas. Quase toda pessoa, quando faz um seguro de carro, um cartão de crédito ou um empréstimo, faz sem perceber um plano de assistência funerária. Tem gente que tem até mais de um plano desses. É venda casada, destaca. Quando prestei serviço para uma grande seguradora, se a apólice do cliente era de um enterro de R$ 3 mil, ela só repassava para a gente R$ 1 mil. E, se eu reclamasse, ameaçava não fazer mais os serviços comigo, assegura.

SOB LUPA O mercado funerário no Distrito Federal, desde 2008, passa por instabilidade jurídica e indefinições. Periodicamente, as empresas do setor têm de renovar Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) no Ministério Público. Elas ainda estão sob a lupa de uma Comissão Especial de Assuntos Funerários (Ceaf), criada para tentar organizar o setor. Os problemas passam por desaparecimento de restos mortais, manutenção de jazigos e irregularidades com hospitais.

EXPANSÃO Segundo empresários do setor funerário, cinco grandes empresas de São Paulo têm interesse em expandir seus negócios para o Distrito Federal. As negociações com grandes funerárias da capital federal avançavam, mas a criação da Comissão de Inquérito Parlamentar dos Cemitérios, na Câmara Legislativa local, e as constantes mudanças de regras para instalar e manter uma funerária na cidade esfriaram o interesse dos investidores.

Desconfie sempre

Apesar da certeza de que há muita gente séria no ramo das funerárias vendendo planos mútuos ou auxílios-funerais em parcelas a perder de vista, o secretário-geral do Sindicato das Empresas Funerárias do Distrito Federal, Argi Aires Cavalcante, pede cautela aos consumidores. Exijam sempre os contratos garantindo a prestação dos serviços e pesquisem o histórico das empresas, para conferir se elas honram o que prometem, aconselha ele, que, há três meses, lançou planos funerários em Brasília para a Associação de Assistência aos Trabalhadores em Educação do DF (Asef).

Em muitas cidadezinhas do interior, a funerária está no mesmo lugar há muitos anos, vai passando de pai para filho e as pessoas confiam. Todos os meses, essas pessoas vão para a porta da empresa e fazem fila para pagar seus planos. Mas é errado confiar nisso. As empresas têm de ter ao menos um patrimônio para oferecer como garantia, como, por exemplo, uma parceira com um cemitério, afirma.

Patrimônio

Para ele, as empresas que não têm um suporte como esse são mais arriscadas, podem deixar seus clientes na mão da noite para o dia. Eu não recomendo comprar um plano de uma empresa que não tenha esse tipo de garantia, alerta. Mas ele admite que, mesmo tendo parceria com um cemitério, todos os recursos arrecadados nos planos que vende vão para o patrimônio da sua empresa. Nada é apartado, como recomenda a boa gestão. (VN e VM)

Fim da desordem

A desordem no segmento de auxílios-funerais está com os dias contados. A nossa ideia é regular esse mercado por meio dos microsseguros. Vamos criar empresas específicas para vender esse tipo de produto, que terão de seguir todas as rígidas regras que hoje garantem a solidez do sistema tradicional de seguros no Brasil, afirma o titular da Superintendência de Seguros Privados (Susep), Armando Vergílio dos Santos Júnior. Pelo projeto de lei que tramita no Congresso e pelo que já desenhou o Ministério da Fazenda, as microsseguradoras serão gestoras de poupança popular de longo prazo. Uma parcela importante do valor da mensalidade terá que ser depositada em um fundo conhecido entre os especialistas como reserva técnica. Os recursos ficarão apartados do patrimônio das empresas e deverão ser aplicados no mercado de forma conservadora.

Caso, no futuro, alguma microsseguradora venha a ter problemas para dar continuidade à prestação dos serviços, as reservas técnicas serão transferidas para outra empresa com saúde, de forma que todos os contratos possam ser cumpridos sem traumas. Queremos evitar que uma situação tão difícil, como a perda de um familiar, se torne ainda mais dolorosa ao se descobrir que o enterro digno, planejado por meio do pagamento de um plano ao longo da vida, não está garantido, diz Vergílio.

No seu entender, com legislação específica e submetida à fiscalização da Susep, as microsseguradoras funcionarão como esteio aos consumidores e como parceiras de negócios com as funerárias, que se limitarão ao serviço para os quais foram criadas. (VN e VM)