Título: Produtores de renda
Autor: Silvia Torikachvili
Fonte: Valor Econômico, 24/03/2005, Valor Especial, p. F1

Geração de renda e trabalho em comunidades desassistidas é sempre um desafio para organizações e investidores sociais. Já faz quase três anos que a Care Brasil desenvolve projetos na Costa do Cacau, no sul da Bahia, onde trabalha com dez comunidades ainda muito distantes da sustentabilidade. O assentamento de Dom Hélder Câmara é uma delas. Desde o final de 2002, a Care está em processo de capacitação de famílias de afrodescendentes jovens para a revitalização da cultura do cacau. São todos remanescentes dos escravos que ali desembarcaram há mais de 300 anos e contribuíram para o apogeu do ciclo do cacau, no século 19 - mas ficaram excluídos do crescimento econômico. "O resgate do cacau como forma de retomar essa comunidade carrega um certo simbolismo", explica Markus Brose, diretor da Care, ao comparar os dois momentos históricos. "O mero crescimento econômico, sem o correspondente social, não promove o desenvolvimento, menos ainda a qualidade de vida." Para que haja amplo desenvolvimento, portanto, a Care estabeleceu quatro etapas para as quais conta com um aporte de R$ 600 mil da Fundação Kellogg e da Kraft Foods. A primeira etapa levou 18 meses e se resumiu a assistência social e segurança alimentar. "A comunidade precisava estar em pé e saudável, antes de receber qualquer capacitação", diz Brose. A capacitação inclui cursos de implantação do sistema agroflorestal, para desenvolver outras culturas em paralelo ao cacau - como seringueira, palmito, pimenta, guaraná. "O objetivo é romper o paradigma da monocultura", explica Brose. "É uma forma de diversificação para que os produtores nunca fiquem sem renda ou sem ter o que comer por causa da entressafra, porque o preço caiu muito ou porque deu praga na lavoura." A geração de renda é a terceira etapa do processo, juntamente com a recuperação da cultura do cacau. Já na segunda safra, os agricultores estão vendendo cacau orgânico certificado. "Dentro de dois ou três anos poderão ser auto-sustentáveis", calcula Brose. A quarta etapa é o fortalecimento organizacional e o acesso a políticas públicas. "É raro encontrar quem tenha carteira de identidade ou certidão de nascimento; muitos são analfabetos", explica Brose. Precisam entrar em contato com tudo isso para poder levar reivindicações aos conselhos municipais, se organizar em associações, gerenciar o negócio, adotar técnicas administrativas. "Nesse processo todo, a organização social precisa dar suporte integral à comunidade, do contrário ela se transformará em favela rural. É esse o grande desafio." Antes da qualificação para o trabalho, do qual virá a renda, é preciso fortalecer a comunidade, concorda o biólogo Alexandre Castro, diretor da Sea Shepherd, organização voltada para certificação de produtos de origem marinha. Um dos objetivos da entidade é oferecer condições aos pescadores artesanais de gerar maior renda com um diferencial: o selo de certificação de práticas de pesca ambientalmente responsáveis. "O produto vai atender à demanda de consumidores conscientes, que preferem peixes e frutos do mar que não foram capturados em fase de desova, nem em áreas de reserva", diz. No esforço de implantar o projeto, Castro e sua equipe já mapearam 18 comunidades de pescadores artesanais na costa brasileira para que sejam treinados nas práticas de higienização do pescado, estocagem, refrigeração e custos. A primeira certificação será para o pescado vendido a granel, que tem um potencial de consumo menor, segundo Castro. Nessa fase, a Sea Shepherd trabalhará em parceria com universidades locais e organizações sociais. A etapa seguinte certificará os enlatados, que representam um volume de vendas cem vezes maior que o produto vendido no balcão, segundo Castro. "O selo de pesca responsável vai agregar valor sócio-ambiental e, de quebra, aumentar a renda das comunidades de pescadores". O desenvolvimento sócio-econômico das comunidades é um esforço no qual estão envolvidos vários atores - além das organizações, investidores sociais como pessoa física ou jurídica, universidades e entidades como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Em Araruna (PB), onde a população chega a 17 mil pessoas, a Telemar apóia um projeto de educação voltado à agricultura familiar que conta com a contribuição de professores da Universidade de São Paulo (USP). O projeto teve início com a capacitação de 1.500 alunos das escolas públicas de Araruna para o manejo do maracujá, fruta abundante na região, de colheita fácil e boa aceitação no mercado. Cada um dos 28 pequenos produtores que se reuniram em associação começaram a se capacitar em 2001, quando não havia trabalho nem renda para ninguém e o maracujá despencava da árvore sem qualquer aproveitamento. "Hoje, cada membro da família do agricultor tem garantida uma renda de dois salários mínimos", diz Felipe Neri, presidente da Associação de Pequenos Produtores Agrícolas de Araruna. Em pouco tempo, os produtores atingiram o estágio de agroindústria. Só em forma de polpa congelada, a associação contabiliza cerca de 14 toneladas/mês de maracujá. "Os pedidos são tantos que não temos como atender", diz Neri. Nem só de maracujá, porém, vivem as famílias de agricultores de Araruna. Graviola, acerola e caju rendem outras 30 toneladas/mês de polpa e fruta in natura para outros 80 produtores. Gerar renda depende de enxergar a oportunidade, segundo Francisco Oliveira, coordenador do Programa Berimbau, na Costa do Sauípe, na Bahia, a 100 quilômetros de Salvador. Ali, onde o turismo é um dos mais caros e requintados do Brasil, oito comunidades sobrevivem há cinco séculos da cultura de subsistência. Com a chegada dos sofisticados hotéis, a Fundação Banco do Brasil, o Previ e a Costa do Sauípe estabeleceram uma parceria para incentivar a vocação regional do trançado da palha de piaçava como forma de desenvolver social e economicamente a localidade. Uma das vertentes do Projeto Berimbau foi a capacitação das comunidades para o trabalho nos hotéis. A outra foi a revitalização do artesanato da piaçava, um tipo de coqueiro do qual é extraída a palha com que as mulheres tecem objetos de grande aceitação entre os turistas. "Já são cerca de 1.200 trabalhando com a piaçava", conta Oliveira. A atividade é desenvolvida por pessoas de mais de 50 anos, mas as mais jovens já começam a se capacitar porque vêem que o artesanato gera renda e dá futuro. O Sebrae também entrou nessa parceria com cursos de design para bolsas, chapéus, tapetes e outros acessórios. Deu tão certo que as artesãs se organizaram em duas associações. Joelma Silva é a presidente de uma delas - a Associação Artesãs Costa do Sauípe, onde 100 associadas se revezam na confecção de 100 bolsas/dia. "Há menos de oito anos, ganhávamos só para comprar um pouco de querosene e farinha", diz Joelma. Hoje, o artesanato da piaçava, que vem passando de geração para geração há séculos, começa a gerar renda. "Todas temos tevê e geladeira em casa e fazemos planos. Pedidos não faltam." Para gerar renda é preciso antes fortalecer a comunidade. É o que vem fazendo o Instituto Socioambiental (ISA) no Vale do Ribeira. A região representa 20% dos 7% que sobraram da Mata Atlântica - é a maior área contínua da mata, de importância vital para a reprodução de espécies e animais, segundo Fábio Graf, agrônomo do ISA. Apesar da diversidade cultural e ambiental, é a região mais pobre de São Paulo, com altos índices de analfabetismo, mortalidade infantil e poucas alternativas econômicas. "Ali sobrevivem 50 comunidades de índios, caiçaras e quilombolas, além de agricultores familiares que fazem a extração ilegal do palmito." Recentemente 70 dessas famílias conquistaram títulos de terra e passaram a se organizar na produção da banana. O Projeto de Desenvolvimento Sustentável de Ivaporunduva, começou em 2001, numa parceria entre o ISA e a cidade de Ivaporunduva com o objetivo de melhorar a comercialização da banana. O Ministério do Meio Ambiente investiu US$ 90 mil, a comunidade se organizou, se reuniu em associação, comprou um caminhão e, desde 2001, eliminou o atravessador da comercialização. O intermediário paga R$ 1,50 pela caixa de 20kg de banana - a mesma quantidade que os agricultores vendem a R$ 4,50. Como o produto é orgânico, 30 produtores de banana do Vale do Ribeira conseguiram a certificação do Instituto Biodinâmico. Hoje, são comercializadas semanalmente 700 caixas de 20kg. "Nos últimos três anos houve um grande progresso e o programa é piloto na região", diz Graf. Mas só a ação de capacitação não basta. "As comunidades precisam obter ganhos econômicos com a banana e com o artesanato da palha da bananeira; precisam ter condições de resistir ao atravessador e obter independência; precisam políticas públicas para o desenvolvimento sustentável do Vale", enumera Graf. "O setor privado pode contribuir viabilizando a comercialização. É só as pessoas prestarem atenção, identificarem o produto como orgânico e darem a si mesmas a oportunidade de praticar o consumo consciente." Muitos empresários estão descobrindo que desenvolvimento econômico sem o correspondente social e ambiental não garante a perenidade do negócio. A constatação foi feita recentemente pela Holcim, em Barroso (MG), no roteiro das cidades históricas. A Holcim comprou a massa falida da fábrica de cimento Paraíso de Barroso, que funcionou na cidade por mais de 50 anos e faliu - por falta de preocupação com a comunidade e com o meio ambiente, segundo Edgar von Buettner, consultor do Instituto Holcim e autor do Projeto Ortópolis. Sob nova direção, a primeira providência da empresa foi aplicar US$ 1 milhão na instalação de filtros de pó de cimento. Localizar as necessidades da população foi a segunda etapa. O Sebrae entrou na parceria em 2002, capacitando a comunidade de artesãos e oferecendo conhecimentos de contabilidade para gerir pequenos negócios. A população de 20 mil habitantes recebeu qualificação para melhorar o padrão de hotelaria, está em vias de instalar o ecoturismo e desenvolver a gastronomia regional. O cultivo de flores e frutos faz parte do agronegócio de 25 famílias; outras 24 pessoas trabalham nas oficinas de costura que prestam serviço em esquema de terceirização. "Há também a produção de mel e o cultivo de ervas medicinais e aromáticas", lembra Buettner. "São possibilidades que se abrem para pequenos agricultores e que podem render ainda muitas surpresas". Uma delas é o empreendedorismo que deve se espalhar entre as famílias que vêm se capacitando em várias atividades. A perspectiva é encontrar uma outra Barroso dentro de mais três anos.