Título: O diabo nos detalhes da reforma sindical
Autor: Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 30/03/2005, Brasil, p. A2

São pequenas as chances de aprovação da proposta de reforma sindical enviada pelo governo ao Congresso. O governo compra briga com quase todo o mundo - empregadores, governadores e prefeitos, sindicatos de araque e pelegos de toda ordem. O projeto agrada, claro, a sindicalistas do PT e da CUT, mas, ainda assim, não a todos. Embora pretenda acabar com a era Vargas nas relações trabalhistas, é contraditório porque aumenta o poder de interferência do Estado. Reformar a estrutura sindical e trabalhista brasileira é um imperativo. Com a democratização política em curso, é preciso fortalecer as negociações coletivas. Ao elaborar sua proposta de reforma sindical - a trabalhista ficou para um segundo momento -, o governo Lula adotou a mesma estratégia do presidente Fernando Henrique Cardoso em seu primeiro mandato, qual seja: mexer na estrutura sindical corporativa e eliminar o poder normativo da Justiça do Trabalho. FHC esbarrou no Congresso, que rejeitou suas propostas. Assim como seu antecessor, Lula propõe o fim do imposto sindical - a consumar-se no prazo de cinco anos - e da unicidade sindical. O governo quer também que as centrais sindicais tenham personalidades sindicais, ou seja, que possam negociar acordos coletivos. Pretende também transferir à Justiça do Trabalho a competência para processar e julgar ações sobre representação sindical - entre entidades sindicais, entre sindicatos e trabalhadores e entre sindicatos e empregadores. Trata-se de um avanço. Nos últimos anos, os conflitos intersindicais vinham sendo julgados pela Justiça comum. Em linhas gerais, tanto Lula quanto FHC propuseram a ampliação da arbitragem voluntária. Com isso, o recurso à Justiça do Trabalho, nas pelejas entre patrões e empregados, ocorreria quando trabalhadores e empregadores assim o desejassem. Isso seria importante porque estimularia a negociação coletiva. O governo atual inova, e o faz de maneira polêmica, ao propor, inspirado nos países europeus, a possibilidade de representação sindical dos trabalhadores nas fábricas. Dificilmente, isso passará no Congresso. Outra novidade é a possibilidade de negociação coletiva de trabalho no setor público. Nesse caso, deve-se esperar forte reação de governadores e prefeitos. O diabo - na proposta de reforma sindical de Lula - está nos detalhes. Há contradições e retrocessos gritantes na proposta, que compreende uma emenda constitucional e um projeto de lei com 238 artigos. Embora proponha o fim da unicidade sindical, o projeto abre uma porta para assegurar exclusividade de representação a alguns sindicatos. Na exposição de motivos da proposta, o ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini, avisa: "Ainda no campo da organização sindical, será possível que continuem a ser únicos os sindicatos que já são reconhecidos pelo Ministério do Trabalho". A Constituição de 1988 permitiu um avanço ao eliminar o poder do Ministério do Trabalho na outorga de cartas sindicais e na intervenção nos sindicatos. Na reforma proposta pelo governo Lula, o papel do ministério é ampliado, segundo avaliação do especialista Paulo Paiva, ministro do Trabalho de FHC entre 1995 e 1998 e hoje professor da Universidade do Texas. Paiva foi um dos autores da primeira reforma proposta pelo governo anterior.

Ex-ministro vê retrocesso e volta à era Vargas

"Parece-me que há o risco de uma maior interferência do Poder Executivo tanto no reconhecimento das entidades sindicais quanto na criação do chamado Conselho Nacional de Relações de Trabalho (CNRT). Com a ampliação do poder da Justiça do Trabalho em processar e julgar os conflitos intersindicais, não haveria necessidade da participação do ministério", diz o ex-ministro. Contrariando tendência mundial, a reforma de Lula sugere o fortalecimento das relações tripartites (governo, empregados e empregadores) em detrimento das bipartites. Introduz o Estado na equação quando a idéia é retirá-lo. O conceito bipartite, inclusive, fala em relação Estado-trabalhadores e Estado-empregadores, nunca em trabalhadores-empregadores. A proposta cria um "fundo solidário de promoção sindical", a ser financiado por 5% das novas contribuições sindicais. Trata-se de mais uma contribuição de trabalhadores e empregadores para manter uma nova estrutura burocrática. De novo, a proposta vai na contramão do que se espera, ou seja, da eliminação de estruturas e bucrocracias estatais na área sindical. O projeto ampara os contratos coletivos de trabalho no tal Conselho a ser criado no âmbito do Ministério do Trabalho. "Em vez de avançar na democratização das relações de trabalho, volta-se aos princípios do modelo varguista. Há um risco grande aí. Desde a Constituição de 88, o ministério passou a ser um agente importante na promoção de políticas de emprego. Agora, dá-se a ele um âmbito de interferência nas relações empregados-empregadores que me parece indevida e que poderá trazer mais problemas que soluções", comenta Paiva. "As experiências exitosas de conselhos sociais, como na Espanha e em Portugal, mostram que essas instituições devem ser independentes do Executivo." O ex-ministro prevê dias difíceis na tramitação da proposta. "Provavelmente, haverá resistência das bancadas que seguirão governadores e prefeitos (em razão da introdução da negociação coletiva no setor público), dos empregadores (em razão da representação sindical no local de trabalho, da promoção das negociações coletivas e da alteração no sistema confederativo), de representação sindical que depende do imposto sindical. Abriram-se muitas frentes de conflito", conclui Paulo Paiva. Nos trilhos Um dos três projetos com os quais o governo pretende inaugurar o sistema de parcerias público-privadas (PPPs) é a retomada das obras da Ferrovia Norte-Sul. Na próxima semana, informa um ministro do Palácio do Planalto, o governo regulamentará o Fundo Garantidor de Crédito, crucial para viabilizar as PPPs.