Título: A "surpreendente" concorrência na aviação civil
Autor: João Manoel P. de Mello e Juliano Junqueira Assunç
Fonte: Valor Econômico, 30/03/2005, Opinião, p. A18

A páscoa, na tradição judaico-cristã, está associada à primavera, ao renascimento. Este ano, ela nos traz o bem-vindo renascimento, ainda que incipiente, da concorrência no setor de aviação civil. Nas últimas semanas, o consumidor recebeu a visita antecipada do coelhinho: o anúncio de promoções agressivas iniciadas pela Varig e pela Gol, agora também implementadas pela TAM. Nossos alunos de pós-graduação, muitos deles de outras partes do país, comemoraram: será mais fácil visitar a família no feriado prolongado. É surpreendente este surto de concorrência? Não. A despeito de movimentos sazonais de demanda que induzem maior concorrência, não é coincidência que estas promoções agressivas ocorreram logo após o começo do fim do famigerado "code share" (vôos compartilhados) entre a TAM e a Varig. A agressividade competitiva que se seguiu é mais um exemplo de um fato conhecido, eloqüentemente, de que os empresários não gostam de competir, mas o fazem quando isto é inevitável. O acordo de "code share" foi celebrado entre o CADE e as empresas aéreas, em março de 2003, com o intuito de viabilizar uma reestruturação do setor, face aos prejuízos amargados nos anos anteriores. Segundo o acordo, as empresas deveriam continuar atuando de forma independente em suas relações comerciais, no que diz respeito à fixação dos preços, freqüência dos vôos, programas de milhagem, operações aeroportuárias e etc. Entretanto, como esperado, as companhias não resistiram às tentações criadas pelo compartilhamento. Em realidade, o "code share" foi uma maneira (mal) disfarçada de aumentar o poder de mercado. Apesar dos devaneios de alguns analistas, isoladamente veiculados na imprensa, os fatos evidenciam a forte relação entre o período de vigor do "code share" e a diminuição da concorrência no mercado de aviação comercial. Primeiro, houve uma queda simultânea na oferta de assentos das duas companhias, fato que não foi observado nas concorrentes. Em nota técnica, a SEAE mostra que houve uma retirada de vôos lucrativos após a primeira fase do "code share". Segundo, o preço único de TAM e Varig na ponte aérea é forte indício de que elas se comportavam, em vários trechos com "code share", como uma só empresa no que se refere à decisão de apreçamento. Finalmente, a mais avassaladora das evidências: bastou o anúncio do fim do "code share" para deflagrar o processo de redução de tarifas. Isto sem contar com evidências mais indiretas contidas, por exemplo, na manchete "TAM anuncia maior lucro de sua história" (Folha de S.Paulo, 15/02/2005). O "code share" foi o pior meio termo para o consumidor. Os ganhos de eficiência às vezes associados às fusões, se é que ocorreram, não lhes foram repassados. E aumentou o poder de mercado. Um potencial benefício seria a fusão dos programas de milhagem, que aumentaria o incentivo a concorrer. Pense em um cliente com milhas acumuladas na Varig. Para induzi-lo a voar TAM, o preço precisa ser muito mais baixo. Fundidos os programas, a diferença de preços que induz mudança é menor, aumentando o incentivo a diminuir preço. Infelizmente, na concepção do acordo, os programas continuaram separados. O resultado só não foi pior porque havia uma empresa operando agressivamente no mercado, a Gol, e isto disciplinou o cartel TAM-Varig. Basta relembrar o comportamento padrão no mercado nos últimos quatro anos: Gol diminuía as tarifas e TAM-Varig a seguiam.

TAM e Varig usaram os vôos compartilhados para, de maneira (mal) disfarçada, aumentar o poder de mercado.

Com o fim do "code share" a competição aumenta tanto nos mercados nos quais só atuava o cartel TAM-Varig, como nos mercados nos quais a Gol também opera. Nos primeiros o argumento é imediato. O "code share" é um mecanismo que facilita o conluio, tácito ou explícito; com seu fim, aumenta o incentivo para competir. O regime de competição muda de monopólio para duopólio, que é mais competitivo. Nos últimos, o número de concorrentes passa de dois para três (a Vasp já não é uma empresa relevante há tempos), aumentando a concorrência. Há outros fatores que comprometem a concorrência no setor? Infelizmente, sim. As intervenções do órgão regulador do setor, o Departamento de Aviação Civil (DAC), têm atrapalhado o funcionamento saudável do sistema concorrencial. Por exemplo, em maio de 2004, ele suspendeu as promoções relâmpago da Gol e decidiu controlar as tarifas. A atitude repressora do DAC diminui o incentivo a concorrer, pois as empresas temem ser punidas por fazê-lo "muito agressivamente". A Gol foi repetidamente acusada de perturbar o mercado, fazendo apreçamento predatório. Seria um caso inédito de predação por uma empresa não dominante, situação nem mesmo contemplada nas legislações e práticas antitruste internacionais. Mais um de nossos tropicalismos econômicos . O crescimento da TAM, a desregulamentação do setor e a entrada da Gol melhoraram o desempenho do setor nos últimos anos. Esta melhoria, no entanto, ocorreu em sístoles e diástoles. As tentativas do DAC de re-regulamentar o mercado e o acordo do "code share" foram revezes significativos. Muitas vezes a concorrência foi responsabilizada pelas turbulências no setor, como se o consumidor tivesse que pagar pela má gestão de algumas empresas aéreas. O que se pode concluir disto tudo? O governo tem sim um papel importante na proteção da concorrência. Primordialmente, é importante não atrapalhar. O DAC é o órgão regulador, mas deve se concentrar nos aspectos de segurança. Concorrência é para os órgãos apropriados: SEAE, SDE e CADE. Seu desempenho tem sido, em média, positivo. Acertaram em cheio em dificultar a fusão entre a TAM e a Varig, erraram ao permitir o estapafúrdio "code share". Acertaram novamente ao revogar o tal compartilhamento. A concorrência é algo frágil. É preciso que o governo contribua para sustentá-la. Não atrapalhar é um primeiro passo. Melhor ainda se os órgãos de defesa da concorrência puderem trabalhar em paz. Nossos alunos agradecem.