Título: É preciso reformar a reforma universitária
Autor: Armando Castelar Pinheiro
Fonte: Valor Econômico, 30/03/2005, Opinião, p. A19

Reforma, de acordo com o Houiass, é uma "mudança introduzida em algo para fins de aprimoramento e obtenção de melhores resultados". Nem sempre, porém, uma reforma melhora as coisas. Isso pode ocorrer por erros de diagnóstico, de concepção ou de implementação, ou porque ela é motivada mais por interesses ou ideologia do que pelo intuito de resolver problemas. Por isso, propostas de reformas precisam passar por testes mais rígidos do que a simples averiguação de suas boas intenções. É necessário checar o diagnóstico que a sustenta, o nexo entre este e as mudanças pretendidas, a probabilidade de que ela tenha o impacto prometido, e a existência de alternativas com custo menor. A reforma universitária proposta pelo MEC apresenta problemas nesses quatro quesitos. O diagnóstico que a orienta parte de quatro "problemas": a baixa proporção de jovens brasileiros na universidade, comparada a países como Argentina e Canadá; a queda da participação das universidades públicas no total de matrículas; uma suposta "mercantilização" do ensino superior privado; e a elitização do corpo discente das universidades públicas. Este é um diagnóstico peculiar. A comparação com países de renda mais alta que a brasileira é enganadora: nesse cotejo, também temos piores serviços de saúde e saneamento etc. Por que singularizar a educação superior? Esse diagnóstico também ignora o forte crescimento que já vem ocorrendo naturalmente no número de matrículas no ensino superior: 83% entre 1998 e 2003. Também não se considera que isso só foi possível graças à expansão do ensino fundamental na década de 1990, e que a melhor forma para aumentar a proporção de jovens na universidade é investindo na educação básica. O setor privado foi o principal responsável por essa expansão do ensino superior. Surpreendentemente, isso não é visto como algo positivo, mas como um enfraquecimento da universidade pública, como se o Estado devesse competir com a iniciativa privada para ver quem oferece mais vagas, em vez de vê-la como uma parceira que lhe permite concentrar esforços em outras áreas críticas. Para contrapor-se a esses "problemas", a reforma propõe duas medidas: gastar mais dinheiro público e regular mais intensamente o ensino superior privado.

Proposta impede a instalação de universidades estrangeiras no país, na contramão do que vêm fazendo países como a China

O aumento proposto no gasto com as universidades federais é significativo: já em 2005, este aumentaria 47% em relação a 2004! Além disso, em quatro anos seriam criadas 400 mil novas vagas, uma expansão de 70%. Aumentos de gastos dessa ordem, sem a identificação de cortes compensatórios em outras despesas, são incompatíveis com a disciplina fiscal. A prioridade do gasto também está errada. Segundo dados do MEC, cada aluno nas universidades federais custa, em média, 13 vezes tanto quanto um aluno na educação infantil e 19 vezes o que se gasta por aluno no ensino médio. Com os mesmos recursos que a reforma propõe gastar a mais nas universidades federais seria possível universalizar a educação infantil ou dobrar o gasto per capita no ensino médio público. Os benefícios sociais seriam incomparavelmente maiores nos dois casos. A reforma aumenta significativamente o controle estatal sobre as universidades privadas, justificando essas medidas com problemas que, além de pontuais, poderiam ser mais bem resolvidos com políticas horizontais, como avaliações regulares e bem divulgadas, e o descredenciamento de instituições com desempenho insuficiente. A reforma opta, porém, por instrumentos regulatórios discricionários e pouco transparentes, como o recadastramento freqüente e os Planos de Desenvolvimento Institucional. Além disso, cria o Conselho Social, órgão responsável por avaliar as universidades, inclusive públicas, cuja forma de composição e importância no processo regulatório não são precisadas. A idéia de que monitorando de perto as universidades privadas o MEC será capaz de melhorar a qualidade do ensino não se sustenta: ele não tem a informação e os recursos necessários para isso, e é grande a chance de que esses instrumentos acabem sendo utilizados com outros fins, menos defensáveis. A experiência mostra que, ao se dar à burocracia poder, discrição e opacidade nas suas intervenções, colhe-se não a realização das boas intenções, mas todo tipo de problema. De fato, o mais provável é a simples captura dos reguladores, prejudicando o alunado. A instituição de tão diferentes objetivos, critérios de aferição e supervisores também tirará foco e eficiência da universidade, atrapalhando o ensino e a pesquisa. A reforma impede a instalação de universidades estrangeiras no país, na contramão do que vêm fazendo países como a China, onde algumas das melhores universidades do mundo têm estabelecido campi avançados. A justificativa de que isso impediria a entrada de instituições de má qualidade não faz sentido: para isso bastaria o MEC negar-lhes autorização caso a caso. Com essa proibição perde-se a oportunidade de melhorar a qualidade do ensino, restringe-se a oferta e aumenta-se a pressão sobre o gasto público. É uma reserva de mercado que só prejudicará o estudante. As medidas de ação afirmativa são o aspecto mais interessante da reforma. A exigência de que os alunos que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas tenham direito a metade das vagas nas universidades federais tornará mais eqüitativa a distribuição dos subsídios que estas concedem, ainda que com sacrifício da qualidade da aprendizagem - os alunos da rede pública têm renda familiar mais baixa, mas também um pior preparo do que os da rede privada. Essa troca de eficiência por eqüidade é política, e na situação atual parece correta. Mas ela apenas reforça o ônus imposto à qualidade do ensino superior pelas amarras regulatórias que a reforma pretende criar. A reforma tem outros aspectos positivos, como a obrigatoriedade de que todos os concluintes do ensino médio façam o ENEM, mas outros problemas, como a pouca ênfase dada à meritocracia como elemento organizador da vida universitária. No todo, ela precisa passar por mudanças significativas, se o objetivo é melhorar a educação no Brasil.