Título: Mercado de capitais é a chave do crescimento do país, diz Mantega
Autor: Vera Brandimarte e Vera Saavedra Durão
Fonte: Valor Econômico, 29/03/2005, Brasil, p. A6

O presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Guido Mantega, que assumiu o banco após a passagem do polemista ex-presidente Carlos Lessa, está apostando todas as suas fichas no mercado de capitais para financiar o novo ciclo de desenvolvimento do país. O banco conta com um orçamento de R$ 60,8 bilhões este ano, um salto de 50% em relação ao ano passado. A economia brasileira, contudo, vai exigir mais. A saída, diz ele, é mobilizar a poupança interna para financiar a produção. Ao se viabilizar como fonte de recursos para as empresas, o mercado de capitais vai promover concorrência direta com o sistema financeiro e contribuirá para baratear o crédito de longo prazo. O mercado de capitais, observa Mantega em entrevista ao Valor, vive um momento de florescimento. O lucro das empresas em 2004 foi maior que o dos bancos e até o BNDES teve um lucro alto ajudado pela valorização das ações. A seguir, os principais trechos da entrevista: Valor: Por que o BNDES decidiu criar uma área específica para mercado de capitais e jogar suas fichas nessa área? Guido Mantega: Estamos no início de um novo ciclo de desenvolvimento, que é diferente dos ciclos anteriores e que exige também um padrão de financiamento diferente. É nessas condições que o BNDES é chamado a desempenhar um novo papel. Nesse novo ciclo vamos contar menos com poupança externa e mais com poupança interna. Um novo ciclo sem endividamento do setor público, e com menos dívida externa é atípico, significa que o país tem que crescer mobilizando a poupança interna. Valor: O mercado de capitais é a alternativa que restou para financiar o crescimento, já que o recurso das privatizações esgotou-se e o fluxo de recursos do exterior é incerto? Mantega: São três pilares do financiamento do desenvolvimento brasileiro. Um é o chamado crédito livre, suprido pelos banco privados. O segundo é o crédito direcionado, que é o crédito para a agricultura, e o que o BNDES libera. E o terceiro é o do mercado de capitais. Hoje há um desequilíbrio, e o mercado de capitais é a perna mais curta, embora com potencial grande. A primeira virtude do crescimento do mercado de capitais é que aumenta a competição, porque hoje tem-se um setor financeiro de pouca competição, o que em parte explica o spread elevado. Os bancos vão ter que aumentar o crédito para investimento. Valor: Entre a visão do ex-presidente Lessa, de que o BNDES tem um projeto de desenvolvimento para o país e teria um papel central no apoio a empresas nacionais, e a visão dos críticos do crédito direcionado e das taxas de juros diferenciadas, como o senhor se posiciona? Mantega: A orientação do banco não era uma orientação do Lessa, era a orientação do governo Lula. É um governo que veio para fazer política industrial, agrícola, política de comércio exterior, ter um papel mais atuante do Estado, e o Lessa estava sintonizado com essa visão. O banco passou a pôr em prática a política industrial do governo, procurou estabelecer as bases para a retomada do desenvolvimento, com atenção especial à infra-estrutura. Isso já responde qual é a minha visão: a da importância do crédito direcionado numa economia como a brasileira, a importância de uma ação do Estado para diminuir as desigualdades regionais, para estimular determinados setores específicos, coisa que o mercado não faz, para suprir lacunas do capitalismo brasileiro, que não são supridas de forma automática, e usar o credito como instrumento de política de governo. No governo anterior, o banco se dedicava a privatizações, não havia política industrial definida, e o banco era mais um banco de negócios. Faltava-lhe um norte, porque depois de feitas as privatizações, o que o banco fazia? Tentou corrigir os erros cometidos nas privatizações. Quando assumi, a orientação do governo Lula permaneceu exatamente a mesma. Quanto à gestão é claro que muda. Valor: Mesmo dentro do governo, os mais ortodoxos questionam o direcionamento dos recursos do FAT, os subsídios na TJLP. Lessa reagiu e se desgastou nesse processo. Tanto que quando assumiu , o senhor teve uma reunião com o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Mantega: Quero deixar bem claro que o Lessa não saiu por isso. É posição do presidente da República que deve haver crédito direcionado e ele cobrava uma ação mais eficiente do BNDES, que liberasse mais crédito, que viabilizasse mais projetos, que complementasse a ação do governo federal, que tem as mãos amarradas para aumentar o investimento no país. Eu entrei para pôr em prática essa tarefa. Valor: Então Lessa saiu por ineficiência? Mantega: Eu não sei por qual razão ele saiu. O presidente da República o admitiu e o demitiu. Uma das primeiras coisas que fiz ao entrar no banco foi uma reunião pública com o Meirelles, quando ele declarou que era a favor do crédito direcionado. Sempre existem os adversários do crédito direcionado, que acham que o Estado não deve ter política industrial. Estamos numa fase do capitalismo brasileiro que ou você cresce ou você é engolido, ou você ganha competitividade ou você vai ser uma mera subsidiária de empresas de outros países. O Brasil perdeu o bonde das duas últimas décadas, mas tem chance de se recuperar. Nas duas últimas décadas, a Coréia se expandiu, se fortaleceu, criou empresas competitivas, a China fez a mesma coisa... e o Brasil ficou para trás, tem empresas que são competitivas até certo ponto, não tem muitas empresas de grande porte com capacidade de competir, não investiu em infra-estrutura por causa da crise do Estado. Mas o Brasil tem um parque industrial relativamente moderno, as empresas que sobreviveram até se fortaleceram e têm uma série de vantagens comparativas em matéria de energia, insumos básicos. Ainda há chances de o Brasil ser um do vencedores. Mas é preciso fortalecer a estrutura produtiva, reduzir custos, inclusive de capital, e tudo isso não se faz espontaneamente. Valor: Lessa havia cortado as linhas da Embraer porque o banco tinha uma exposição muito grande na empresa, e agora o BNDES voltou a lhe ofertar crédito. A relação com as multinacionais, que foram discriminadas na gestão anterior, estão menos tensas. O que mudou? Mantega: Evidentemente tem que haver diferença em relação à gestão anterior ou não haveria razão para mudança. Tenho estilo diferente, encaminho as coisas de forma diferente. Valor: Mas em relação às multinacionais, o tratamento mudou ou continuam fora das prioridades? Mantega: Nacional está no nome do banco. A prioridade do banco é desenvolver a produção nacional, fortalecer grupos nacionais. Isso não impede que se apóie também iniciativas de multinacionais, embora saibamos que elas têm outras fontes de crédito. Mas se uma multinacional vai gerar empregos no país, tem índice elevado de nacionalização, paga tributos e ajuda na balança comercial, vai ser apoiada pelo banco porque o objetivo é apoiar iniciativas que permitam desenvolvimento tecnológico, geração de emprego, de saldo comercial. A Embraer, por sua vez, é uma das empresas mais importantes do país e tem alto valor agregado, componente tecnológico grande, é competitiva no mercado internacional. Tem que ser apoiada. É claro que ela também tem que procurar fontes alternativas, não pode depender só do banco. Valor: Qual é a política em relação à criação de multinacionais brasileiras? Mantega: Uma das diretrizes do banco é apoiar a internacionalização de empresas brasileiras. O país tem que fortalecer suas empresas para competir num raio de ação ampliado e o BNDES apóia isso com veemência. Por exemplo, Vale do Rio Doce, Odebrecht, Camargo Corrêa, Gerdau, todas as siderúrgicas, todas as empresas com atuação fora do país são ajudadas pelas linhas BNDES-Exim. Valor: O banco também vai estimular fusões para fortalecer essas empresas, como já se falou, por exemplo, sobre CSN e Usiminas? Mantega: Queremos apoiar a consolidação das empresas, a capacidade de competição em nível internacional e isso muitas vezes pode passar por fusões. Mas tem que ser algo desejado pelas empresas. Parece-me que não é esse o desejo no caso do setor siderúrgico porque está todo mundo indo muito bem e cada um quer ser o líder na consolidação. Então, tem mais cacique que índio, aí fica difícil. Falta vendedor, só tem comprador. Aí não vai sair nada. Valor: No setor de papel e celulose e petroquímica acontece a mesma coisa? Mantega: Petroquímica, siderurgia e papel e celulose são setores prioritários. Tanto que criamos uma superintendência específica, de insumos básicos. Papel e celulose tem o mesmo problema da indústria siderúrgica. As empresas brasileiras têm que ganhar escala. Mas também não vejo aí tendência de fusão. Existem projetos de expansão de cada uma delas, o setor tem US$ 10 bilhões de projetos. O setor petroquímico é mais complicado porque governos anteriores deixaram a indústria em uma situação meio complicada, que começa a ser agora desembrulhada. Valor: O banco é sócio da Rio Polímeros. Tem interesse em ser sócio de outros projetos, como o pólo da Bolívia, da Braskem, e outros? Mantega: Esses projetos têm que solicitar financiamento e aporte de capital. Vamos participar mais do capital acionário. Essa é uma orientação do banco. Valor: O banco vai vincular a participação no capital acionário à adoção de práticas de governança corporativa? Mantega: O banco sempre estimulou práticas de governança corporativa, contabilidade mais transparente e agora estimula empresas a participar mais do mercado de capitais. O banco tem um papel muito grande nesse sentido na medida em que tem a maior carteira de renda variável do país, de R$ 44 bilhões. Se se senta em cima da carteira, não dá liquidez ao mercado. Se der mais liquidez à carteira, vai valorizar o mercado. O banco vai estimular o mercado de debêntures, vai criar fundos específicos de investimento para infra-estrutura no mesmo molde que o de energia (gerido por instituição privada e cujos cotistas são principalmente fundos de pensão). Valor: Quantas fundos estão sendo modelados? Mantega: Não tem número preciso. Estamos trabalhando num fundo de índice, como foi o PIBB, para atrair o pequeno poupador, para lhe dar a oportunidade de ter boa alternativa de investimento apostando na produção, no dividendo, no resultado da empresa. Teremos fundos para energia, siderurgia, comércio exterior... Valor: Estes voltados para o investidor institucional? Mantega: Sim, também estamos pensando em recebíveis, na constituição de fundos de investimentos em direitos creditórios. Por exemplo, Petrobras, Vale têm fornecedores com um potencial financeiro na mão, porque têm crédito contra uma empresa de rating AA. Esse fornecedor pode captar recursos a 130, 140% do CDI, e hoje só tem acesso a 200% do CDI. E também vamos reciclar a carteira de ações. A idéia é vender as ações que estão maduras para poder assumir novas posições em empresas. Valor: O CMN manteve pela terceira vez a TJLP apesar da alta da Selic. Foi uma decisão por consenso? Mantega: Foi unânime. O CMN está dizendo que o crédito de longo prazo tem que ter uma taxa diferente do crédito de curto prazo. Valor: Mas no CMN houve uma defesa de um aumento de 0,5 ponto percentual na TJLP... Mantega: Duvido, alguém pode ter pensado isso mas tenho certeza de que nenhum conselheiro defendeu isso. Pode até ser que algum dos dezenas de assessores tenha dito algo, mas os conselheiros não falaram. Eles sabem que a TJLP não pode ser confundida com a Selic, que está lá para corrigir distorções de curto prazo. Ela teria quer ser comparada com os títulos do Tesouro de prazo mais longo. Valor: Como será tratado o setor público? Há uma queda de braço com o Metrô paulista e há informações de que o banco acertou a participação na capitalização da Cesp. Mantega: Não fechamos nada. E o setor público tem limites estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal e pelo BC. Existem vários limites. Valor: O BNDES poderia entrar na capitalização da Cesp? Mantega: O BNDES já tem R$ 3 bilhões de exposição na Cesp. Isso não está equacionado. Estamos tentando equacionar porque a Cesp é um problema sério... Valor: Numa entrevista o senhor admitiu que iria entrar... Mantega: Falei que estávamos estudando uma maneira de ajudar, não que iria entrar na capitalização. Já temos R$ 3 bilhões na Cesp. É um problema que transcende o BNDES, é do Tesouro. Valor: A solução passa por uma capitalização feita por São Paulo? Mantega: Acredito que sim. O problema é do Estado de São Paulo. A União tenta ajudar, como ajudou no ano passado. Colocou R$ 1 bilhão na Cesp via BNDES. Seria bom alguém fazer uma análise da Cesp, de quando ela se endividou.