Título: Cabeças antigas e a MP 232
Autor: José Roberto Mendonça de Barros e Clayton Netz
Fonte: Valor Econômico, 29/03/2005, Opinião, p. A12

A decisão do governo do presidente Lula de editar a MP 232 precipitou uma ampla e inédita reação de repúdio de praticamente todos os setores da opinião pública brasileira. Em uníssono, condenou-se energicamente a proposta de ampliação do arrocho tributário, embutida no texto produzido pelo Ministério da Fazenda, sobretudo a penalização imposta às empresas prestadoras de serviço, com o aumento da base de cálculo para o recolhimento do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Presumido, de 32% para 40%. Entre os atingidos, em particular, estão empresas de pequeno e médio porte e as chamadas "empresas de um sócio só", tocadas por profissionais que atuam sozinhos, sem o concurso de empregados. O repúdio à MP 232 expressa o cansaço diante da voracidade do fisco: não por acaso, a política do governo na área de impostos recebeu a desaprovação de 68% dos entrevistados na última pesquisa CNI/Ibope, divulgada na terça feira, 22. A sociedade não tolera mais as tentativas de ampliação da carga fiscal, mesmo que encobertas por uma duvidosa intenção de praticar a isonomia entre os contribuintes que trabalham com carteira assinada e aqueles que sobrevivem organizados nas chamadas Pessoas Jurídicas (PJs). Sob essa ótica, os titulares de PJs são, em princípio, sonegadores que se escudam nelas para burlar o fisco e pagar menos impostos. Isso podia ser a regra em outros tempos, quando profissionais liberais e autônomos bem sucedidos descobriram as vantagens tributárias da constituição de empresas, criando as primeiras PJs. No entanto, como lembrou recentemente o jornalista Carlos Alberto Sardenberg (Estado de S. Paulo de 17/01/2005), a proliferação de PJs dos últimos anos nada tem a ver com aquele movimento inicial. A decisão de formá-las não é dos profissionais, mas obedece a uma imposição do mercado de trabalho. Preocupadas em reduzir suas despesas e obrigações trabalhistas, as empresas simplesmente vêm forçando a migração dos assalariados contratados pela CLT para a pessoa jurídica. Sem outro capital do que sua força de trabalho, esses profissionais não têm outra alternativa do que abdicar da carteira assinada em favor da nota fiscal, para sobreviver e sustentar suas famílias. Nas cabeças antigas da Receita Federal e do partido dominante, bastaria um torpedo legisferante para reverter esse quadro. Ora, pois: se o aumento da carga provocado pela MP 232 incomoda os prestadores de serviços, nenhum problema. É só desistir da PJ e voltar à carteira assinada, como chegou a sugerir o secretário da Receita, Jorge Rachid. E com uma possível vantagem: de uma só tacada talvez o governo conseguisse encurtar a distância que nos separa dos 10 milhões de novos postos de trabalho prometidos pelo então candidato Lula na campanha presidencial de 2002... Ironia à parte, é preciso ter claro que esse tipo de visão não é fruto de uma especial vontade de praticar maldades de parte do governo. Ele tem raízes numa concepção da economia e dos negócios arcaica e ultrapassada, pré-globalização e que desconhece a revolução provocada pela Tecnologia da Informação (TI). Para boa parte da turma no poder em Brasília, o modelo de organização das empresas ainda é aquele do ABC paulista velho de guerra, do torno mecânico, da máquina de escrever e das calculadoras Olivetti: produção verticalizada e mão de obra intensiva empregada em bunkers fabris como o da Volkswagen, que chegou a abrigar, no final da década de 70, mais de 40 000 funcionários, que produziam 500 000 automóveis anualmente. Caso saíssem a campo para ver a vida como ela é, esses senhores constatariam que esse mundo, embora não tenha desaparecido totalmente, vem mudando de forma radical. Na verdade, nem aquela Volkswagen existe mais. Hoje, com cinco fábricas menores, a Volks emprega pouco mais da metade daquele contingente. Com um detalhe: de suas linhas saíram no ano passado 750 000 carros, volume 50% superior ao dos tempos do gigantismo. Ou seja: com muito menos gente, a montadora produz muito mais.

Para boa parte da equipe de Lula, o modelo de organização das empresas ainda é aquele do ABC paulista

Isso não aconteceu por acaso. Simplesmente é o resultado das gigantescas mudanças em curso no processo produtivo que, combinadas com a adoção de métodos gerenciais eficazes, como a produção enxuta, provocaram saltos brutais na produtividade, estabelecendo novos paradigmas no mundo dos negócios. Pressionadas a reduzir seus custos para se manter competitivas, as empresas focaram-se em seu "core business", terceirizando tudo o que podiam mandar fazer fora-produtos e serviços. Não faltam exemplos do impacto desse novo paradigma entre nós. Vamos nos deter em três apenas, todos na área de prestação de serviços. O primeiro deles é o da agricultura. Altamente produtivo, exibindo sucessivas supersafras na última década, o campo brasileiro vem se beneficiando da inovação tecnológica promovida por organismos como a Embrapa. Dificilmente, porém, conquistas obtidas em seus laboratórios e centros de pesquisa, como a introdução das novas variedades de sementes e as práticas de plantio direto, chegariam ao conhecimento de milhões de agricultores espalhados pelo país, não fosse o suporte que lhes presta uma rede enorme de agrônomos, técnicos agrícolas e consultores privados, trabalhando individualmente ou em pequenas empresas sem empregados. Um segundo exemplo da importância das redes de prestadores de serviços pode ser verificado na área da Tecnologia da Informação. Os extraordinários progressos gerados pela TI não chegam ao mercado apenas por intermédio de empresas do porte da Oracle ou da SAP. Ao contrário. Grande parte desse trabalho de disseminação é feito por meio de centenas e até milhares de escritórios e consultores especializados em serviços que vão da manutenção de hardware, implantação de sistemas de automação e criação de sites ao desenvolvimento de programas específicos para os pequenos e médios negócios. Dispersos geograficamente, esses profissionais atendem à uma demanda que, por razões de escala, preço e custos implícitos na contratação de equipes próprias, as grandes do setor não conseguem suprir. Esse fracionamento da atividade de prestação de serviços, uma das características mais marcantes do novo paradigma, atinge um vulto insuspeitado na indústria cultural e de entretenimento. Trata-se de um universo vastíssimo no qual se misturam arte, tecnologia e produção de conhecimento. Na maior parte das vezes, implica a formação de equipes multidisciplinares que se organizam por projetos como freelances e se dissolvem ao seu final. É o que acontece na gravação de um disco, na organização de um evento de moda como a São Paulo Fashion Week ou na encenação de um musical como "O Fantasma da Ópera", cuja produção envolveu diretamente 200 técnicos de diferentes qualificações. Enfim, essa é a nova forma de organização do mundo dos negócios, que mudou, está mudando e vai continuar mudando, gostemos ou não. Como diria o filósofo holandês Spinoza, "nem rir, nem chorar, apenas compreender". Algumas cabeças antigas, no entanto, parecem não querer compreender e desejam interromper esse processo por decreto. E isso não é bom para o Brasil e para os brasileiros.