Título: A cor da universidade
Autor: Marcelo Côrtes Neri
Fonte: Valor Econômico, 29/03/2005, Opinião, p. A13

Segundo estudo recente, a proporção de negros que ocupam vagas nas universidades federais (5,9%) seria igual à de sua presença na sociedade brasileira (5,91%). A comparação de dados da população em geral, colhidos pela Pesquisa Nacional de Amostras a Domicílio (PNAD) do IBGE, e de levantamentos feitos nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), seria indicativa da não necessidade da adoção de políticas de cotas, conforme proposta colocada pelo Ministério da Educação (MEC). Em particular, as proporções obtidas da PNAD são usadas como balizadores dos critérios de aprovação no vestibular de acordo com a legislação de cotas em discussão, merecendo, portanto, atenção detalhada. Senão vejamos. Os dados citados referem-se à participação exclusiva de negros, o que torna a crítica às cotas menos sérias, pois o critério de acesso às universidades proposto pelo MEC se aplica ao grupo formado por indígenas, pardos e negros. Os afrodescendentes correspondem a 46,9% da sociedade brasileira, contra 34,2% da sua respectiva participação nas universidades federais. Ou seja, a representação relativa de negros e pardos nas universidades federais seria 12,4 pontos percentuais inferior à da população brasileira. A PNAD permite fazer levantamentos diretos não só da participação de diferentes grupos raciais na população como da freqüência destes mesmos grupos nos bancos universitários. O uso de uma mesma fonte de dados garante que comparamos laranjas com laranjas. Complementarmente, pesquisas domiciliares seriam mais imunes a vieses de resposta motivados pela própria política de cotas do que nos levantamentos realizados em estabelecimentos universitários. Cálculos feitos a partir dos microdados da última PNAD demonstram que a participação de negros (3,45%) e pardos (30,56%) entre os alunos das universidades públicas (estaduais inclusive) é ainda menor do que aquela apresentada nos levantamentos baseados em instituições federais de ensino superior, sendo 13,3 pontos percentuais inferior ao do total da população brasileira. Se tomarmos o campus das universidades privadas como referência, esta diferença praticamente dobra, atingindo o valor de 25,39 pontos percentuais, resultado do menor poder aquisitivo dos afrodescendentes. De forma que, no cômputo geral das instituições públicas e privadas de ensino superior, a diferença para a participação de negros e pardos na sociedade brasileira atinge 22,23 pontos percentuais. Idealmente, a comparação da freqüência no ensino superior de grupos raciais com a participação destes grupos na população deveria usar dados da faixa etária típica de universitários. Neste caso, a presença relativa de negros e pardos é maior do que do conjunto da população. Entre os jovens com 18 anos que idealmente estariam na fase pré-vestibular, os afrodescendentes são maioria, com 51,33%, contra 48,12% dos brancos. Na população com 80 anos de idade estas estatísticas correspondem a 34,03% e 64,65%, respectivamente. Os dados demográficos nos informam a existência de forte queda na presença de afrodescendentes ao longo do ciclo da vida. Uma explicação está na pobreza deste grupo, o que levaria a uma menor expectativa de vida, pelo menor acesso a serviços de saúde e a taxas de fecundidade mais altas, também características dos segmentos de renda mais baixa.

Os afrodescentes são hoje em maior número nas universidades, mas ainda estamos no meio do caminho da plena representatividade

A diferença da composição etária implicaria que a exclusão dos afrodescendentes na população-alvo do sistema superior de ensino seria relativamente maior. Se tomarmos os jovens de 18 a 25 anos, a diferença da participação de afrodescendentes universitários em relação à participação na população atinge a marca de 24,24 pontos percentuais, metade de sua respectiva participação na população jovem. Os resultados não provam que a adoção de cotas é, ou não, desejável. Mas confirmam a satisfação de condição necessária - e não as condições suficientes - para a aplicação de ações afirmativas: a existência de desigualdade de acesso ao ensino superior entre grupos raciais, que a princípio estava sendo questionada. Uma forma direta de comparar a presença de diferentes grupos raciais é a probabilidade de freqüência nos bancos universitários: 3,55% no caso de brancos contra 1,33% no caso dos afrodescendentes. Se tomarmos os fluxos de freqüência universitária dos jovens como referência, o Brasil estaria a meio caminho da situação da plena representatividade dos afrodescendentes na universidade brasileira. Obviamente, podemos recair na discussão se o copo está meio cheio, ou meio vazio. Isto sem falar que entre o copo e os lábios podem existir outros percalços. Mas os 117 anos da abolição da escravatura, no último país do mundo ocidental a fazê-la, sugerem um processo lento em direção à democratização racial da universidade brasileira. Por outro lado, contrariando a nossa reputada inércia histórica, o período recente apresenta marcada aceleração do movimento de crescimento e diversidade racial da população universitária brasileira. A taxa de crescimento na freqüência no ensino superior no país foi de 25,62% nos últimos dois anos, sendo particularmente alta no contingente de pardos e negros, que crescem cerca de 41,58% e 68,37%, respectivamente, ou 44,52% no agregado, contra 20,71% dos brancos. As questões de onde e como prosseguir, como por exemplo, buscar o norte da igualdade racial por via das cotas, são passíveis de acalorados e produtivos debates. Na escolha de rumo, não podemos deixar de registrar onde os afrodescendentes estão hoje: apenas a meio caminho da sua plena representatividade nas instituições de ensino superior brasileiras. Neste trajeto vale a pena registrar - para depois entender suas forças subjacentes - o movimento recente em direção à diversidade racial das universidades brasileiras. O número de afrodescendentes cursando o ensino superior passou de 750 mil para 1,1 milhões no intervalo de dois anos.