Título: Onda de terceirização cria novas potências
Autor: BusinessWeek De Nova York e de Bangalore
Fonte: Valor Econômico, 29/03/2005, Empresas &, p. B8

Com o sol do Mediterrâneo iluminando cafés e lojas de Cannes, na Côte d´Azur, bandeirolas com logomarcas da Motorola, Royal Philips Electronics, PalmOne e Samsung tremulavam nos mastros de iates ancorados na enseada. A bordo, altos-executivos coordenavam reuniões ininterruptas de vendas durante o dia e jantares regados a champagne à noite, para promover seus mais novos aparelhos sem fio. Fora do centro de convenções da cidade, palhaços com pernas-de-pau e lindas modelos com perucas vermelhas atraíam os transeuntes para exibições de produtos. Para todos aqueles da indústria de telecomunicações com intenção de alardear suas conquistas para o mundo, não houve lugar mais glamouroso que o Congresso Mundial 3GSM realizado em fevereiro no sul da França. Ainda assim, a maioria dos lançamentos mais intrigantes ocorridos em Cannes se deu longe do agito. A HTC, empresa que desenvolve aparelhos de mão multimídia, nem mesmo tinha seu stand. Ao invés disso, a companhia de Taiwan mostrou seus novos equipamentos junto com sócios que vendem os modelos HTC sob suas próprias marcas. A Flextronics demonstrou vários telefones conceituais exclusivamente a portas fechadas. E a Cellon International alugou um discreto apartamento próximo do centro de convenções para mostrar seus aparelhos para executivos de empresas de telecomunicações. As novas ofertas incluíam o C8000, que tem um software surpreendente. Coloque o aparelho no ouvido e ele ativa o modo de telefone. Leve-o ao olho e ele automaticamente passa para o modo de câmera. Coloque o olho na parte de trás do aparelho e ele se transforma em uma câmera de vídeo. HTC? Flextronics? Cellon? Há um bom motivo para que estes não sejam nomes muito conhecidos. Os aparelhos multimídia produzidos a partir de seus protótipos acabam nas prateleiras das lojas sob as marcas de companhias que não querem que você saiba quem criou seus produtos. Mesmo assim, essas e outras empresas pouco conhecidas, com nomes como Quanta Computer, Premier Imaging, Wipro Technologies e Compal Electronics, estão rapidamente surgindo como potências ocultas da tecnologia. Elas são a vanguarda do próximo estágio da terceirização - o da inovação. Quando corporações ocidentais começaram a vender suas fábricas e terceirizar a produção, nos anos 80 e 90, para melhorar a eficiência e concentrar suas energias, a maioria delas insistiu que todas as pesquisas e desenvolvimentos importantes continuariam sendo feitos internamente. Mas essa promessa foi quebrada. Hoje, empresas como a Dell , Motorola e Philips estão comprando projetos inteiros de alguns aparelhos digitais de companhias asiáticas, adaptando-os às suas próprias especificações e colocando neles suas marcas. E isso não envolve apenas telefones celulares. Fabricantes asiáticas que operam sob empreita e casas independentes de design se tornaram fortes em quase todos os equipamentos, de laptops e aparelhos de TV de alta definição a tocadores de música MP3 e câmeras digitais. "Até dois ou três anos, os clientes estavam acostumados a participar dos projetos", diz Jack Hsieh, vice-presidente financeiro da Premier Imaging Technology, de Taiwan, uma grande fornecedora de câmeras digitais para marcas famosas dos Estados Unidos e Japão. "Mas desde o ano passado, muitos apenas pegam nossos produtos. Eles precisam fazer isso por causa da guerra de preços." O setor eletrônico está bem adiantado nesse ponto, mas a tendência está se espalhando para quase todos os segmentos da economia. Em 8 de fevereiro, a Boeing anunciou que está trabalhando com a HCL Technologies da Índia para desenvolver um software para para o seu jato 7E7 Dreamliner. Gigantes do setor farmacêutico como a GlaxoSmithKline e Eli Lilly estão se unindo a companhias de pesquisas biotecnológicas da Ásia, numa tentativa de reduzir o custo médio de US$ 500 milhões para se colocar um novo medicamento no mercado. Reforçando essa tendência está um consenso cada vez maior de que a inovação é vital - mas que os atuais gastos com pesquisa e desenvolvimento não estão apresentando os melhores retornos. Após anos espremendo os custos nas linhas de produção, nas áreas de apoio administrativo e outras, os executivos-chefes estão fazendo perguntas mais duras sobre suas outrora intocáveis operações de pesquisa e desenvolvimento. Por que poucos produtos de sucesso estão saindo dos laboratórios para o mercado? Quantos engenheiros caros estão realmente criando produtos para mudar o jogo ou inovações tecnológicas? "A área de pesquisa e desenvolvimento é a maior despesa individual passível de controle que restou", diz Allen Delattre, diretor da consultoria Accenture. "As empresas terão de reduzir custos ou elevar a produtividade dessa área." O resultado é que a estrutura das corporações modernas está sendo repensada. O que mais, especificamente, pode ser feito em nível interno? A maioria das principais companhias ocidentais está se voltando para um modelo de inovação que emprega trabalhadores e sócios globais. O modelo pode incluir fabricantes de chips americanos, engenheiros de Taiwan, criadores de softwares da Índia e fábricas chinesas. Quando a cadeia inteira trabalha em sintonia, há um salto dramático na velocidade e eficiência do desenvolvimento de produtos. Mas quando esse equilíbrio não funciona, os custos podem ser altos. E começam com o perigo de se encorajar novos concorrentes. A Motorola contratou a BenQ de Taiwan para projetar e fabricar milhões de telefones móveis. Mas a BenQ começou a vender telefones no ano passado no disputado mercado chinês, sob sua marca própria. Isso levou a Motorola a desfazer seu contrato. Outro risco é as companhias de marca perderem o incentivo para continuarem investindo em novas tecnologias. É por isso que até mesmo companhias que trabalham muito com a terceirização se recusam a discutir que tipos de projetos de hardware elas compram, e de quem, impondo uma confidencialidade rígida aos fornecedores. As preocupações também explicam porque diferentes companhias estão adotando abordagens muito variadas em relação a esse novo paradigma. A Dell, por exemplo, tem pouca participação no projeto de seus PCs notebook, das TVs digitais e outros produtos. A HP diz que contribui com a tecnologia principal e pelo menos algumas sugestões de design em todos os seus produtos, mas depende de parceiros de fora para desenvolver tudo que vai de servidores a impressoras. A Motorola compra projetos inteiros para os telefones mais baratos, mas controla todo o desenvolvimento dos aparelhos mais sofisticados. "É preciso estabelecer uma linha divisória", diz Edward J. Zander, principal executivo da Motorola. "O núcleo da propriedade intelectual está acima dela, e a tecnologia de commodity está abaixo." Sempre que as companhias estabelecem essa divisão, não há dúvidas de que a demarcação entre o trabalho crítico de pesquisa e desenvolvimento e o trabalho de commodity está diminuindo ano após ano. As implicações para a economia mundial são enormes. Países como Índia e China, onde os salários continuam baixos e os recém-formados em engenharia são abundantes, continuarão sendo os maiores beneficiados com a criação de empregos na área de tecnologia, e se tornam provedores cada vez mais importantes de capacidade intelectual. Alguns analistas estão até mesmo vendo o surgimento de uma nova divisão global de trabalho: o Ocidente rico vai se concentrar nos níveis mais elevados da criação de produtos, e todos os empregos envolvidos na transformação de conceitos em produtos de fato poderão ser transferidos. Essa grande divisão já está tomando forma no setor global de produtos eletrônicos. O processo começou na década de 90, quando Taiwan emergiu como capital do design de PCs, em grande parte porque a tecnologia mais importante foi padronizada, no sistema operacional da Microsoft e no microprocessador da Intel. Hoje, os "original-design manufacturers" (ODMs), ou fabricantes de design original - assim chamados porque projetam e montam produtos para outros -, fornecem cerca de 65% dos PCs notebook do mundo. A Quanta espera produzir, sozinha, 16 milhões de notebooks este ano em 50 modelos, para compradores que incluem a Dell, Apple Computer e Sony. Hoje, os ODMs de Taiwan e outros designers são fortes em quase todos os aparelhos digitais existentes. Dos 700 milhões de telefones móveis que deverão ser vendidos no mundo este ano, até 20% serão trabalho dos OMDs, segundo estima o analista Adam Pick, do centro de estudos iSuppli Corp. de El Segundo, na Califórnia. Cerca de 30% das câmeras digitais são produzidas por OMDs, 65% dos MP3 players, e cerca de 70% dos assistentes pessoais digitais (PDAs). Ao aumentarem sua experiência com PCs, eles estão cada vez mais criando receitas para suas próprias engenhocas, misturando os últimos avanços em chips personalizados, softwares especializados e componentes digitais de última geração. Além de Taiwan, a Índia está emergindo como peso-pesado no design. As principais empresas que estão transformando o país em um criador mundial de softwares incluem a HCL e a Wipro, e elas deverão ajudar a Índia a aumentar suas receitas contratadas com pesquisa e desenvolvimento dos atuais US$ 1 bilhão ao ano, para US$ 8 bilhões em três anos. É provável que o novo participante em design mais agressivo seja a Flextronics. Essa gigante manufatureira já produz equipamentos de rede, impressoras, consoles de jogos e outros hardwares. Mas três anos atrás ela começou a perder grandes encomendas de celulares e PDAs para OMDs de Taiwan. Desde então, o executivo-chefe, Michael E. Marks, realizou US$ 800 milhões em aquisições para formar uma força de 7 mil engenheiros das áreas de softwares, chips, telecomunicações e mecânica dispersos em vários países. A decisão mais "barulhenta" de Marks foi pagar cerca de US$ 30 milhões pela Frog Design, a pioneira que ajudou a criar ícones da era da informação como o Mac original da Apple em 1984. A Flextronics vem desenvolvendo suas próprias plataformas para telefones celulares, routers, câmeras digitais e aparelhos de imagem. Seu objetivo é tornar-se uma criadora de aparelhos eletrônicos de consumo e equipamentos tecnológicos com custos baixos. Marks tem uma visão especialmente radical de para onde tudo isso caminha: ele acredita que os conglomerados de tecnologia ocidentais estão na iminência de uma profunda reorganização da área de pesquisa e desenvolvimento que vai rivalizar com a terceirização da produção. O resultado final, segundo ele: algumas gigantes dos produtos eletrônicos vão reduzir suas forças de pesquisa e desenvolvimento de vários milhares de funcionários para algumas centenas, concentrando-se na arquitetura própria, estabelecimento de especificações-chave e gerenciamento de equipes globais de pesquisa e desenvolvimento. Isso já está acontecendo. A HP reduziu seus gastos com pesquisa e desenvolvimento, que por muito tempo representaram cerca de 6% das vendas, para 4,4%. O orçamento de pesquisa e desenvolvimento da Cisco Systems caiu da média de 17% para 14,5%. E os números também estão caindo na Motorola, Lucent e Ericsson. Ainda assim, a maior parte das empresas insistem que continuarão fazendo a maior parte do trabalho mais importante - e que não têm planos de "passar a tesoura" nos departamentos de pesquisa e desenvolvimento. "As companhias sabem que se quiserem uma vantagem competitiva sustentável, elas não conseguirão isso com a terceirização", diz Frank M Armbrecht, presidente do Industrial Research Institute, um centro de estudos que monitora os gastos com pesquisa e desenvolvimento das empresas. As companhias também se preocupam com a mensagem que enviaram aos investidores. A terceirização da produção, o suporte técnico e o trabalho de apoio administrativo fazem sentido do ponto de vista financeiro. Mas a propriedade do design é muito importante para o valor intrínseco de uma corporação. Os investidores podem perguntar: se uma companhia depende de gente de fora para realizar seus projetos, qual o volume de propriedade intelectual que ela realmente tem, e qual a porcentagem dos lucros obtidos com um produto de sucesso chega de fato aos seus cofres, ao invés de serem pagos em taxas de licenciamento? Quem vai lucrar mais com a terceirização da inovação não está claro. As primeiras evidências sugerem que os titãs ocidentais de hoje podem continuar sendo os líderes, com a orquestração global de redes de inovações. Mesmo que eles percam sua vantagem tecnológica e seu toque em relação aos clientes, eles poderão ser amanhã grandes conglomerados enxutos. (Tradução de Mário Zamarian)