Título: Foram 22 anos de acordos e desacordos
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 29/03/2005, Finanças, p. C3
A decisão do governo Lula de não renovar o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) encerra um ciclo de 22 anos de relacionamento intermitente e tumultuado, que começou com a carta de intenções de fevereiro de 1983, quando o Brasil quebrou - na esteira da moratória do México, no "setembro negro" de 1982, no que foi o início de uma crise sem precedentes da dívida externa dos países em desenvolvimento. Foram ao todo sete acordos, do governo militar de João Batista Figueiredo ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT), intercalados por períodos de distanciamento político e desacordos, planos de estabilização malsucedidos, moratórias, reestruturação da dívida externa com desconto, e muita resistência dos governos em cumprir o que já estava na primeira carta de intenção, em 1983: austeridade fiscal. O preço pago por erros de lá e erros cá foi perda de produto, desemprego e empobrecimento do país. O comportamento do Produto Interno Bruto, nesses anos, foi errático, em ziguezagues, e apenas em cinco anos esparsos o país cresceu mais de 5%: em 1984, 85, 86, 94 e 2004. Só a partir do acordo de 1998, patrocinado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, e pelo ministro da Fazenda, Pedro Malan, é que os entendimentos com o FMI passam a ser cumpridos à risca. Até então, era uma seqüência de cartas de intenção, pedidos de "waiver" (perdão), novas cartas e suspensão de acordos por descumprimento de metas ou por crises no governo. O acordo de 1998 mudou essa rotina e foi renovado e estendido várias vezes, não por descumprimento de metas, mas para manter aberto o acesso a financiamentos do FMI. Até o Plano Real, de junho de 1994, a hiperinflação derrotou todas as metas estabelecidas e jogou por terra todos os acordos com o Fundo. No dramático "setembro negro" de 1982, o Brasil já estava quebrado, abatido por dois choques do petróleo e por uma brutal elevação da taxa de juro americana, que passou de 8,7% ao ano, em 1978, para 17% em 1981, afetando todo o estoque de endividamento externo do país, contratado a taxas flutuantes. O presidente Figueiredo, que encerraria o ciclo do regime militar no país, só abriu as negociações com o FMI depois das eleições de 15 de novembro de 1982. Imaginava-se, na ocasião, que a crise era marcada por um problema passageiro de baixa liquidez internacional e, nesse contexto, o governo acertou um acordo até 1984, tomando recursos do Fundo para pagar as contas externas, além de empréstimos-ponte junto aos bancos para enfrentar a interrupção dos créditos ao país. Mas a crise da dívida se revelou algo muito mais sério e nem o FMI estava preparado para enfrentá-la. E só terminou com uma renegociação total dos débitos por 30 anos e com desconto, concluída em 1994. Do período de 1982 a 1992, quando nenhum dos três acordos assinados com o FMI foi cumprido, e o país continuava sem crédito internacional, ficam algumas reflexões: todas as terapias aplicadas para debelar a inflação fracassaram; não houve determinação dos governos para desindexar a economia e fazer um duro ajuste fiscal; não havia, sequer, concordância sobre o diagnóstico nem sobre a necessidade de reformas estruturais, que só começaram a ser feitas nos anos 90. Nem tudo, porém, foi perda de tempo nesse período. Nos primeiros dez anos após a falência de 1982, o país começou a construir consenso sobre os males da desordem fiscal, criou instituições e passou a organizar formas de controle das contas do setor público. Antes de 1983, ninguém no governo havia ouvido falar em déficit nominal, operacional ou primário. Foram os técnicos do FMI que elaboraram os termos do primeiro acordo e ensinaram aos brasileiros os primeiros rudimentos de uma metodologia de controle das contas públicas que a Europa já usava desde a década de 50. O governo trabalhava com quatro orçamentos e não controlava nenhum deles: orçamentos Monetário, da União, da Previdência Social e de Fundos e Programas Especiais. Um caos só administrável pelo regime ditatorial. Aliás, entre 1965 e 1972, período de governo militar, os acordos com o FMI eram corriqueiros, a instituição sempre punha à disposição do país um empréstimo do tipo "stand-by" que quase nunca era sacado, porque o país não tinha problema de balanço de pagamentos, mas usava do aval do FMI como um "selo de qualidade", um aval para a política econômica vigente. Diferentemente do período JK, que fez da denúncia de um acordo com o FMI bandeira política que foi incorporada pela esquerda, até que o governo Lula acabou por derrubar a idéia de que tudo o que tem cara feia e gosto ruim vem por imposição do Fundo. Houve, assim, uma enorme revolução na área das finanças públicas nos anos 80 e 90. Unificam-se os orçamentos, institui-se a Secretaria do Tesouro Nacional, que passa a administrar a dívida pública antes nas mãos do Banco Central, separa-se BC do Banco do Brasil e por trás do caos começam a aparecer os rombos, esqueletos, ralos. Começam, também, as privatizações. Em dezembro de 1983, a dívida líquida do setor público representava 51,5% do Produto Interno Bruto. O déficit nominal era de cerca de 20% do PIB (os dados da época são precários, mas era dessa ordem de grandeza) e, como a inflação era muito elevada (encerrou aquele ano em 211%), o ministro Delfim Netto convenceu o FMI a usar, como critério de desempenho do acordo, o conceito de déficit operacional (que subtraia das contas a correção monetária). O balanço de pagamentos registrava déficit em transações correntes de US$ 6,7 bilhões, bem menor do que os US$ 16,2 bilhões de 1982. O ajuste externo feito por Delfim foi vigoroso. Duas maxi-desvalorizações cambiais elevaram o saldo comercial de US$ 780 milhões em 1982 para US$ 13 bilhões em 1984; o déficit em conta corrente se transformou num superávit de US$ 94 milhões; e as reservas cambiais saíram de US$ 938 milhões para US$ 7,5 bilhões nesse mesmo período. Mas a inflação, medida pelo IGP-DI, ao final de 1984, batia em 223,81%. Entre 1985 e 1989, durante o governo Sarney, foram vários os contatos com o FMI e um acordo, quando o quarto ministro da Fazenda do período, Maílson Ferreira da Nóbrega, conseguiu firmar um contrato "stand-by" com duração de 19 meses, em carta enviada à diretoria do Fundo em 29 de junho de 1988. Em 1989, final de um governo que produziu o Plano Cruzado, o Plano Bresser, o Plano Verão e a moratória, a inflação, medida pelo IGP-DI, acumulava variação de 1.783% , jogando o déficit nominal consolidado do setor público em 83,1% do PIB. O déficit, no conceito operacional, que expurgava os efeitos da inflação, também era muito alto, de 6,9% do PIB. Foram anos caóticos. Francisco Dornelles, primeiro ministro da Fazenda do governo democrático, bem que tentou, mas não conseguiu convencer Sarney da necessidade de a inflação ser combatida com rigor fiscal. Dilson Funaro, segundo ministro, coordenou a elaboração do Plano Cruzado, que foi enterrado no fracasso da reunião de Carajás, em maio de 1986, quando alguns economistas do núcleo que comandava o plano advogaram uma elevação substancial da taxa de juro, seguida de um ajuste fiscal drástico. O desejo de Sarney por um plano de desenvolvimento e as eleições de novembro daquele ano adiaram soluções e desembocaram no malfadado Plano Cruzado II. Funaro não teve boa relação com o FMI. Em fevereiro de 1987, já com a inflação apontando para o descontrole e reservas cambiais exauridas, o país novamente quebra. Funaro decreta a moratória da dívida externa e cai pouco depois, em abril. Luiz Carlos Bresser Pereira assume a pasta da Fazenda. Ele não pretendia negociar com o Fundo antes de acomodar a situação dos banqueiros privados. Bresser lançou pela primeira vez a idéia da securitização da dívida externa (com desconto). Tentou discuti-la com o secretário do Tesouro americano, James Baker, que a descartou. A proposta, porém, acabou sendo viabilizada pelo secretário seguinte, Nicholas Brady, no chamado Plano Brady, em 1989, e foi o que permitiu início do fim da crise da dívida. Pedro Malan concluiu a renegociação da dívida externa brasileira em abril de 1994, e a suspensão da moratória. Os contratos com cerca de 800 bancos credores foram assinados sem que o país tivesse acordo com o FMI, uma situação bastante singular. Do acordo de junho de 1988, negociado por Maílson da Nóbrega, que substituiu Bresser Pereira, o governo sacou apenas a primeira parcela. As turbulências políticas do fim do governo Sarney e os temores gerados pela Constituição de 1988 afastaram as possibilidades de acordos externos duradouros. Fernando Collor de Mello assumiu a Presidência da República em março de 1990 e anunciou seu plano de estabilização, com o confisco da poupança financeira e, em setembro, numa tentativa de acordo com o FMI, envia à direção da instituição uma carta de intenção assinada pela ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, e pelo presidente do Banco Central, Ibrahim Eris. A carta não saiu da gaveta do diretor-geral do FMI, Michel Camdessus. No meio das negociações, Zélia deixou o governo, numa demissão que pegou de surpresa uma missão do FMI em Brasília, que ainda tentava um acordo. Sua substituição por Marcílio Marques Moreira, e um acordo sobre os pagamentos de juros da dívida externa junto aos bancos privados, foram suficientes para reabrir as portas do Fundo para um novo contrato, aprovado pela diretoria da instituição em 29 de janeiro de 1992. Nesse ano, o governo consegue também fechar uma negociação com o Clube de Paris, em torno das dívidas de governo a governo. Com o impeachment de Collor, em setembro, o acordo é suspenso. Quando da concepção do Plano Real, sob o comando do então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, seu esboço foi submetido inicialmente ao FMI, que tratou a iniciativa do governo Itamar Franco, na ocasião, com total desprezo, como mais uma tentativa de acabar com a hiperinflação destinada ao fracasso. Afinal, essa era a história que se repetia desde o Plano Cruzado, de 1985. Mas o Plano Real foi implementado, bem-sucedido e o país passou os primeiros quatro anos da estabilização afastado do caixa do FMI. Nesse período, o Brasil acumulou pesados déficits em transações correntes, chegando ao final de 1998 com déficit correspondente a 4,24% do PIB. Uma seqüência de crises internacionais (México em 1994, Ásia em 1997, Rússia em 1998), somada à crise também na Argentina, provocam uma brutal redução dos créditos externos ao país, que àquela altura sustentava um regime de taxa de câmbio quase fixa. Isso levou o Brasil, de novo, às portas do Fundo em outubro de 1998. As negociações foram concluídas em 13 de novembro, quando FMI e os principais países industrializados divulgaram a aprovação do maior plano de socorro já elaborado pela instituição: US$ 41,5 bilhões. Daí em diante, os acordos foram sendo renovados e esticados até a decisão de ontem do governo do PT. Só agora, passados 22 anos, o país se mostra capaz de andar com suas próprias pernas. Depois de tantos tropeços, colhe uma boa safra de indicadores macroeconômicos que lhe dão maior segurança quanto à solvência externa e interna. É a primeira vez que não há risco de crise cambial nem de descontrole inflacionário. A economia cresce e o debate não se concentra só na estabilidade, mas em como maximizar o crescimento sem esbarrar em gargalos e gerar inflação. A dívida líquida do setor público como proporção do PIB ainda é elevada, mas já foi pior. A dívida, que em 1984 chegou a 55,8% do PIB, caiu dez anos depois, em 1993, para um nível bastante razoável, de 32,56% do PIB, e ao final de mais dez anos, saltou para 57,18% do PIB, com prazos e custos onerosos. Hoje representa 51,3% do PIB. Outros indicadores importantes de solvência do país, como serviço da dívida/PIB, dívida total/exportações, são hoje os melhores desde o início da série apurada pelo Banco Central, em 1970. O pacote de socorro financeiro ao Brasil de 1998 destinou-se a conter o que mais se temia na época, que era o risco de que uma crise cambial de grande porte no Brasil fosse o início de um colapso no sistema mundial. Nesse acordo, havia um caráter inovador: ao invés do acesso pingado aos empréstimos do FMI, abriu-se a possibilidade de saques volumosos - US$ 9 bilhões de imediato e outros US$ 9 bilhões quando fosse necessário. Os ânimos, porém, melhoraram pouco em relação ao país, que mantinha o regime de câmbio quase fixo e via as reservas cambiais secarem. O anúncio, por parte do governador de Minas Gerais, Itamar Franco, em janeiro de 1999, de que não pretendia honrar seus compromissos junto à União, foi o suficiente para precipitar mais uma revoada de perda de reservas. Em julho de 1998 as reservas brutas somavam US$ 70,21 bilhões. Em janeiro de 1999, a cifra despencou para US$ 36,13 bilhões. No FMI, o estado era de apreensão. No Brasil, deu-se o início de uma desastrada troca de presidente do Banco Central, e da política cambial até então defendida com ardor por Malan. No dia 12 de janeiro sai Gustavo Franco e a taxa de câmbio quase fixa e entra Francisco Lopes, com a "banda diagonal endógena". Não era uma mudança de regime, mas uma desvalorização um pouco mais acentuada do câmbio: a exótica fórmula de Chico Lopes pretendia uma desvalorização de 8%. Ninguém acreditou naquele sistema de desvalorizações sob controle, e entre os dias 13 e 14 as reservas caíram US$ 4,8 bilhões. No dia 16 de janeiro, Pedro Malan e Chico Lopes estavam em Washington, na sede do FMI, reunidos com Camdessus e com o vice-diretor Stanley Fischer. Eles foram chacoalhados para interromper aquela experiência e, no dia 19, o governo finalmente muda a política cambial e adota o regime de taxa cambial flutuante. Chico Lopes caiu no dia 1º de fevereiro e foi substituído por Armínio Fraga. O anúncio da escolha de Fraga produz uma valorização de 8% do real no dia 2. Stanley Fischer, que tinha acabado de chegar a Brasília, começa a discutir com Malan e Fraga um aperto no torniquete do acordo, com aumento do superávit fiscal em 0,5% do PIB. A carta menciona, também, a opção que seria implementada só em junho: o regime de metas para a inflação. Aprovado pelo Senado, Fraga assumiu a presidência do Banco Central no dia 4 de março e aumentou a taxa básica de juro (Selic) de 39% para 45% ao ano. O real, que no dia 2 de março havia caído para seu mais baixo patamar, R$ 2,22 por dólar, inicia um processo de recuperação e chega, no dia 13 de abril, com a cotação de R$ 1,66. E os juros, em 19 de maio, caíram para 23,5% ao ano. O país começava a se recuperar do trauma da desvalorização e o FMI começava a sonhar com o sucesso do programa com o Brasil para melhorar sua reputação, trincada pela atuação nas crises da Ásia e da Rússia. O acordo de 1998 - que pelos prazos normais deveria encerrar-se em novembro de 2001 - foi cancelado e substituído por um novo arranjo, solicitado pelo governo brasileiro em 23 de agosto de 2001, prevendo a liberação de US$ 15 bilhões, para reforço das reservas internacionais e como garantia contra ataques especulativos ao real. Em agosto de 2002, já sob forte turbulência marcada pelas incertezas decorrentes das eleições presidenciais no Brasil e crise na Argentina, Malan e Fraga enviam carta ao diretor-geral do FMI, Horst Köhler, solicitando um novo acordo "stand-by" de 15 meses de duração e o cancelamento do acordo em curso, que terminaria em 13 de dezembro daquele ano. Esse entendimento colocaria US$ 30 bilhões à disposição do novo presidente da República. "O objetivo do programa é diminuir as incertezas no campo externo e reduzir a preocupação quanto à orientação da política macroeconômica após a eleição presidencial, facilitando assim a transição para o governo que assumirá a administração federal a partir de 2003", diz a carta. Essa iniciativa singular foi precedida de negociação do governo FHC com os candidatos à sucessão e da "Carta aos Brasileiros", onde Lula se comprometeu com a estabilidade econômica e respeito a contratos. E livrava um governo de esquerda a começar seu mandato em busca de um acordo com o Fundo Monetário. Tentativa semelhante, mas sem sucesso, foi feita pelos ministros Delfim Netto e Ernane Galveas, na transição para o governo Tancredo Neves, de 1984 para 1985. Galveas procurou o FMI para fazer um acordo que desse a Tancredo alguma tranqüilidade para começar seu governo, mas o Fundo não concordou. Em fevereiro de 2003, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e o presidente do BC, Henrique Meirelles, enviam a primeira carta da gestão Lula ao FMI. Nela, aumentam a meta de superávit primário em 0,5 ponto percentual, de 3,75% do PIB para 4,25% do PIB, para colocar a dívida líquida como proporção do PIB em trajetória de queda, depois da subida em 2002. Ao final do primeiro ano de mandato, o governo Lula opta por acertar com o FMI a extensão por mais 15 meses do acordo que estava para terminar. Embora não estivesse com problemas de balanço de pagamentos, o governo do PT entendeu que a postergação do acordo por mais 15 meses funcionaria como um seguro contra eventuais turbulências externas e uma transição para uma situação, como agora, mais sólida externa e internamente.