Título: Os juros internos e a valorização cambial
Autor: Marcelo Tsuji
Fonte: Valor Econômico, 01/04/2005, Opinião, p. A12

A partir do segundo semestre do ano passado, pôde ser observada uma forte valorização do real frente ao dólar, mas a posição oficial do governo brasileiro foi que nada poderia ser feito para conter a apreciação do câmbio, pois uma vez que o dólar estava de desvalorizando em todo o mundo, o real apenas acompanhava essa dinâmica dos mercados mundiais. Contudo, a verdade é que tal idéia é correta somente quanto à direção do movimento, pois a intensidade do mesmo varia de país a país de acordo com suas circunstâncias particulares. Podemos ver isso da seguinte forma. O Federal Reserve Bank dos Estados Unidos constrói um índice de câmbio nominal que mede o comportamento do dólar em relação a várias moedas. Com a ajuda do mesmo, e transformando a nossa taxa de câmbio nominal em um índice, é possível verificar que nos últimos seis meses o real valorizou-se mais em relação ao dólar do que o resto do mundo. Entre junho de 2004 e janeiro de 2005, o dólar desvalorizou-se cerca de 5% em relação à média das moedas mundiais, enquanto que no mesmo período a valorização do real frente ao dólar chegou perto de 15%. Isso significa que aproximadamente 10% de nossa apreciação foi causada por fatores internos e não por um conjunto de causas comuns a todos os países. Obviamente, a elevação da taxa de juro Selic iniciada a partir de meados do ano passado foi o fator específico no caso brasileiro. Antes de tudo, devemos começar com a observação que, teoricamente, nos mercados futuros de câmbio e juros os preços devem seguir em geral uma regra conhecida como Paridade Coberta de Juros (PCJ), que em sua versão mais conhecida diz que a variação entre o valor da taxa de câmbio presente em t e seu valor futuro em t+1 deve ser igual à diferença entre a taxa de juros interna (i) e externa (i*). Isto é:

Pelo menos nos últimos meses a formação de preços de juros e câmbio no Brasil tem seguido em linhas gerais o comportamento preconizado pela PCJ. Quando isso ocorre em um cenário de estabilidade cambial, e o diferencial de juros interno e externo torna-se muito grande, abrem-se várias oportunidades de arbitragens financeiras, especialmente quando agentes de um país conseguem fazer captações externas em sua própria moeda. No caso brasileiro isso tem ocorrido, dentre outros mecanismos, graças aos chamados contratos de NDF (Non-Deliverable Forward). De forma simples, podemos dizer que NDFs são contratos futuros feitos no exterior, designados em uma moeda com pouca ou nenhuma liquidez internacional, mas transacionados na prática com uma moeda aceita internacionalmente. Podemos descrever uma transação hipotética em NDFs, que captura e sintetiza as principais características das inúmeras modalidades de operações derivativas com câmbio e juros que ocorrem no momento (e nem todas utilizando NDFs).

Um banco vende um contrato futuro de reais no exterior, com taxas de câmbio já definidas até a data do vencimento, de tal forma que a NDF torne-se equivalente a uma venda de um título pré-fixado em reais. Se o comprador estrangeiro achar que a taxa de câmbio entre o real e o dólar ficará constante ou irá se valorizar, podemos supor que ele aceite uma NDF com uma taxa de juro um pouco acima da internacional, pois seus ganhos efetivos em dólares serão no mínimo preservados. Nessa NDF, o banco toma uma posição comprada em dólares, de tal modo que ele "zera" a mesma através de uma venda futura de dólares na BM&F. Devido à relação estabelecida pela PCJ, essa venda futura torna-se uma operação de renda fixa para o banco, com um ganho igual à diferença entre a taxa interna e externa de juros. Logo, se a taxa de câmbio entre o real e o dólar mantiver-se de fato constante (ou se valorizar), os ganhos financeiros para ambos os lados serão enormes no vencimento da NDF. Para o comprador, haverá um retorno em dólares acima da taxa de juro internacional. E para o vendedor, mesmo após o pagamento da taxa pré-fixada ao comprador do contrato, restará um alto lucro resultante do diferencial entre os juros interno e externo. O grande perdedor, obviamente, é a sociedade brasileira que sofre as conseqüências dos juros internos altos que são necessários para se manter a lucratividade dessa operação. O ponto importante a observar é que essas transações geram posições fortemente vendidas em dólar futuro. Isso explica a razão pela qual os "swaps" cambiais invertidos do Banco Central não estavam tendo efeito, pois embora funcionassem como compras no câmbio futuro, estavam sendo anulados por essa enxurrada de posições vendidas na BM&F. Ademais, esses contratos de dólar futuro na BM&F exigem depósitos de margem que são geralmente cobertos por meio de remessas de dólares para o Brasil através de fundos especiais no exterior. Assim fica claro porque a compra de dólares do Banco Central no mercado presente também parece não ter efeito sobre o câmbio. Além dos recursos provenientes do superávit em transações correntes, há essa grande quantidade de dólares entrando no país por meio da conta de capitais, com a finalidade de cobrir as margens das posições vendidas na BM&F. Toda essa situação deixa o governo cada vez mais engessado, pois o grande volume de posições vendidas em dólar futuro da BMF elevam o risco de que pequenas perturbações levem a grandes oscilações nos mercados financeirol. Algum choque exógeno mais intenso pode exigir uma liqüidação antecipada dos contratos de NDFs. Isso, por sua vez, levaria a uma zeragem desordenada das posições vendidas na BM&F, com a concomitante compra de dólares no mercado presente para serem reenviados ao exterior. Nesse cenário, um grande "overshooting" do câmbio seria inevitável, com as suas conhecidas conseqüências desestabilizadoras. Concluindo, tentamos mostrar que: 1) as ações do Banco Central (leilões de compra de dólares, "swaps" invertidos, etc.) para tentar combater a valorização do real são inúteis porque lidam apenas com os efeitos do problema, mas não com sua causa principal, que são os juros internos extremamente elevados; e 2) quanto mais se adia a redução dos juros, mais se acumulam as tensões nos mercados futuros de câmbio e juro, aumentando de forma desnecessária os riscos para a nossa economia.