Título: Judiciário, um copo meio cheio
Autor: Armando Castelar Pinheiro
Fonte: Valor Econômico, 01/04/2005, Opinião, p. A13

Em anos recentes se observou um grande esforço da comunidade acadêmica, de instituições multilaterais e organizações não governamentais em construir bancos de dados com indicadores internacionais comparados. De um lado, isso viabilizou inúmeros estudos sobre os fatores e políticas que influenciam o processo de desenvolvimento econômico. De outro, tem permitido avaliar melhor a situação de cada país, comparando-a com a média mundial ou com a realidade de países semelhantes em termos de renda, cultura, geografia etc. Esse esforço de compilação sistemática de informações coincidiu com o fortalecimento da visão de que a qualidade das instituições é um importante determinante do sucesso do desenvolvimento dos países. Não surpreende, portanto, que muitos desses bancos de dados disponibilizem indicadores comparados para diversas instituições, entre elas o judiciário. Estudos com esses indicadores têm demonstrado, empiricamente, o papel central dessa instituição em viabilizar o desenvolvimento. O Brasil ocupa uma posição intermediária em relação à qualidade dos seus sistemas legal e judicial nas comparações mundiais, regionais ou entre países em desenvolvimento. Em pesquisa do Banco Mundial sobre governança pública, o país situou-se na mediana de quase 200 países em termos do respeito às leis. Já os resultados do Latinobarômetro nos colocam na quarta pior posição, entre 18 países latino americanos, em relação ao cumprimento das leis. O Brasil é melhor avaliado, mas ainda fica um pouco abaixo da mediana latino americana em relação à qualidade do serviço prestado pela justiça, que 53% dos entrevistados consideram ruim ou muito ruim, contra 21% que a acham boa ou muito boa. Avaliações sobre aspectos específicos do desempenho do judiciário mostram um quadro semelhante. Por exemplo, 60% das empresas brasileiras inquiridas pelo Banco Mundial sobre o ambiente de negócios no país indicaram confiar, em graus variados, que o sistema judicial proteja os direitos de propriedade, mais que na média (55%) dos 58 países em desenvolvimento pesquisados. Mas só um quinto das empresas disse acreditar que os tribunais são sempre ou quase sempre "honestos e livres de corrupção", uma proporção pequena, mas acima da média regional e pouco inferior à observada nos EUA. Da mesma forma, "apenas" 36% dos entrevistados pelo Latinobarômetro disseram acreditar que seja "possível subornar um juiz para conseguir uma sentença favorável", contra 39% que pensam o mesmo em relação a obter concessões de funcionários públicos. Nos dois casos, o Brasil situa-se próximo à media latino americana. Apesar de baixa, a confiança no Poder Judiciário é maior no Brasil do que na grande maioria dos países latino americanos. Mais preocupante, em nosso caso, é não se poder compensar com a crença na justiça a pouca confiança interpessoal no Brasil, a menor em toda a América Latina, que por sua vez é a região do mundo em que as pessoas menos confiam umas nas outras.

Para que o desempenho da justiça melhore, é preciso ir além da reforma, mudando sua cultura e melhorando a qualidade das leis

Outra pesquisa do Banco Mundial (Doing Business) obteve que o custo e o número de procedimentos necessários para se fazer cumprir contratos comerciais no Brasil estão abaixo da média da região, ainda que acima da dos países ricos. O tempo gasto nisso é, porém, maior no Brasil, que também se destaca em outras comparações internacionais por ter uma justiça lenta, corroborando pesquisas feitas no país, que mostram ser este o principal problema do nosso judiciário. Há divergências e concordâncias sobre as causas da morosidade da justiça. Para uns, ela deriva da falta de recursos, em especial de magistrados. Mas o número de juízes no Brasil é comparável à média internacional e ao de outros países em que o judiciário é mais bem avaliado. Além disso, o gasto com o judiciário aumentou muito nos últimos 20 anos e há indicações de que ele não é pequeno para padrões internacionais. Por outro lado, há indícios de que os recursos aplicados na justiça são mal aproveitados. Por exemplo, milhares de casos são trazidos anualmente à justiça para explorar sua morosidade, adiando o cumprimento de obrigações, ou porque os magistrados de 1ª e 2ª instância não seguem a jurisprudência estabelecida pelos Tribunais Superiores, mesmo quando essa está solidificada. Com isso, se desperdiça recursos, do ponto de vista da coletividade. Acelerar a justiça usando melhor os recursos disponíveis é o objetivo central da reforma do judiciário em curso, cuja face mais visível é a emenda constitucional aprovada em 2004. Essa reforma tem três vertentes: 1) agilizar o trâmite de processos em que já há jurisprudência bem estabelecida. Na maior parte das vezes esses envolvem o setor público. De acordo com o STJ, 62% dos processos nesse Tribunal têm a CEF, a União ou o INSS como parte. A maioria desses casos deverá passar a ser resolvida na primeira instância, ou não mais entrar na justiça, com o uso da súmula vinculante. O mesmo deve ocorrer com os 4% dos processos no STJ que têm o Banco do Brasil, o Itaú ou o Bradesco como parte; 2) melhorar a gestão da justiça. Várias medidas nesse sentido constaram da emenda constitucional - como a criação do Conselho Nacional de Justiça, a extinção do recesso forense, a distribuição imediata de processos e o uso de indicadores de produtividade como critério de promoção. Outras iniciativas incluem de melhores informações à criação de prêmios para estimular e divulgar casos de excelência; e 3) reformar os códigos de processo, que para 80% dos magistrados são uma causa muito relevante da morosidade (e uma causa relevante para outros 15%). O governo enviou ao Congresso vários projetos de lei reformulando a legislação processual nas áreas trabalhista e civil. Essas medidas podem reduzir bastante a morosidade. Mas, como mostrado acima, este é apenas o mais evidente e menos polêmico problema da justiça brasileira. Para aproximar o desempenho do nosso judiciário da boa prática internacional é preciso ir além, mudando a sua cultura e melhorando a qualidade das leis. Mais pesquisas, mais indicadores e mais discussões públicas serão necessárias para conscientizar a sociedade da relevância desse tema e angariar o apoio da magistratura.