Título: Patentes opõem EUA e Brasil
Autor: Sergio Leo
Fonte: Valor Econômico, 04/04/2005, Brasil, p. A2

O governo espera que os Estados Unidos adiem hoje, pela terceira vez, a decisão sobre a ameaça de retirar vantagens comerciais na importação americana de produtos brasileiros. A decisão, que pode afetar até 17% dos produtos hoje exportados, com tarifas mais baixas, pelo Brasil aos EUA, seria uma represália contra falhas na repressão à pirataria de marcas e patentes pelas autoridades brasileiras. Desde 1989, o Brasil sofre, periodicamente, ameaças de retirada de benefícios comerciais americanos por desavenças na área de propriedade intelectual. Só uma vez, em meados dos anos 90, a represália foi adotada de fato, por menos de um ano. Embora o governo acredite em uma decisão favorável hoje, depois de esforços que incluíram até forte empenho do setor privado brasileiro, o tema da propriedade intelectual tem aumentado de relevância na lista de atritos entre os dois países, até como reflexo de ações mais agressivas do Brasil nesse campo. Está em curso, na diplomacia internacional, uma séria discussão sobre o futuro das patentes, marcas e direitos de autor e a liberdade de produtores e consumidores de usarem o conhecimento gerado por empresas, universidades e governos. Nos três primeiros dias úteis da próxima semana, em Genebra, representantes dos países-membros da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) farão um encontro especial para discutir a proposta apresentada pelo Brasil, Argentina e outros 12 países, para que a instituição adote uma "Agenda de Desenvolvimento", com medidas para impedir que as legislações internacionais de direitos de propriedade intelectual se concentrem apenas na proteção dos interesses diretos dos detentores de patentes e marcas. Brasil, Argentina e os outros defensores da proposta, entre eles Egito, África do Sul e países mais pobres, como Bolívia e Quênia, querem que a OMPI patrocine medidas de promoção ao desenvolvimento, como a incorporação, nos tratados internacionais, de dispositivos para reprimir práticas anticompetitivas das empresas donas de marcas e patentes, provisões para transferência de tecnologia e salvaguardas para garantir o interesse público (como a quebra de patentes de remédios por motivos de saúde pública). Os Estados Unidos vêm defendendo na OMPI medidas em outra direção, em favor da extensão de prazos de patentes e da ampliação da proteção ao direito de propriedade intelectual no ambiente digital. Os EUA defendem na OMPI, que as ações em favor dos países em desenvolvimento concentrem-se principalmente em "construção de capacidade" (capacity building) para criação de sistemas de registro e controle de direitos de propriedade intelectual. A proposta da "Agenda de Desenvolvimento", patrocinada pelo Brasil, embora também defenda o fortalecimento dos escritórios de patentes e reconheça a importância da proteção ao conhecimento, diz textualmente que o sistema de patentes e correlatos é "um meio e não um fim em si mesmo", e que os trabalhos da OMPI têm de criar flexibilidades para levar em conta as situações particulares de cada país.

Tema da propriedade intelectual gera atritos

Há, na OMPI, um movimento para constituição de um comitê em separado para tratar desses assuntos relativos ao desenvolvimento; o Brasil e outros parceiros se opõem à idéia, por medo de que essa separação isole e esterilize as discussões sobre o assunto - assim como a criação de um comitê sobre recursos genéticos e conhecimento tradicional serviu para que pouco progresso tenha ocorrido na OMPI em matéria de combate à biopirataria. Os defensores do fortalecimento da defesa de propriedade intelectual, com grande apoio inclusive no governo e no setor privado brasileiros, argumentam que ela é necessária para estimular a criação, o investimento em pesquisa e o estímulo ao desenvolvimento de tecnologia no país. Não há dúvida de que os direitos de monopólio garantidos pela patente são um poderoso estímulo à pesquisa. Pelo menos, não havia dúvida, mas existe quem diga o contrário em Brasília. Há duas semanas, patrocinado por um órgão das Nações Unidas, esteve no Brasil acompanhado de outros especialistas o diretor adjunto do departamento de Estudos sobre Desenvolvimento da Universidade de Cambridge, Ho-Joon Chong, conhecido pelo seu "best-seller" "Chutando a escada", no qual defende que os países desenvolvidos se tornaram ricos usando políticas que, agora, tentam proibir, nas instituições internacionais. A poderosa indústria farmacêutica suíça foi construída graças a uma política mais frouxa de direitos de patentes, que permitiu a laboratórios "roubarem conhecimento desenvolvido na Alemanha, que, por sua vez, roubou tecnologia desenvolvida pelos ingleses", mostrou Chong, em palestras sucessivas para os técnicos do ministério do Desenvolvimento, jovens diplomatas do Instituto Rio Branco e pesquisadores do Ipea. Na prática, o temor de roubo de patentes tem impedido a colaboração entre centros de pesquisa e entre pesquisadores, afirmou o economista, citando manifestações da British Society, e relatando outros casos de transgressão, no mundo desenvolvido, das normas que agora se discute aplicar mundialmente. É alto o custo de um sistema de controle de patentes, lembrou Chong. "Em muitos países, trata-se de escolher entre fiscais para esse setor ou mais professores e enfermeiras", disse. Esse ponto é também citado na Agenda de Desenvolvimento defendida pelo Brasil na OMPI. Na semana passada, o senador americano Norm Coleman, responsável por um relatório sobre o Brasil e os direitos de propriedade intelectual, que influiu na decisão a ser divulgada hoje pelos EUA, deixou o país bem impressionado com o empenho demonstrado pela Fiesp e empresários brasileiros em relação ao assunto. Como bem mostram as ações do Brasil na OMPI e o "tour" de Ho-Joon Chong por selecionadas platéias da burocracia, a discussão, no governo, é bem mais complexa do que podem indicar as enfáticas campanhas contra a pirataria.