Título: Projeto leva água a regiões marcadas pelo desperdício
Autor: Chico Santos Do Marizópolis
Fonte: Valor Econômico, 07/04/2005, Especial, p. A6/7
Está chovendo pouco no atual "inverno" do semi-árido nordestino, pondo a perder as safras de sequeiro de milho e feijão. Apesar da escassez, a maior parte dos açudes e pequenas barragens da região ainda tem bastante água do "inverno" de 2004 para enfrentar o período tradicionalmente seco do ano, que começa em junho e vai até novembro. Há água para o abastecimento humano e animal e também para a irrigação das culturas de arroz e frutas. Os açudes teriam muito mais água e a produção irrigada poderia ser bem maior, contudo, se o desperdício não fosse uma das características mais presentes na região que será beneficiada pela polêmica transposição de águas do rio São Francisco. A transposição de águas do "velho Chico" para o Nordeste Setentrional, debatida desde o século XIX, nunca esteve tão perto de sair do papel. É um sonho tão vivo no imaginário sertanejo que, de um modo geral, ele considera inadmissível discutir a necessidade ou mesmo a prioridade da obra. O Valor percorreu, durante 11 dias, 2.200 quilômetros nos Estados do Ceará, Paraíba, Pernambuco e Bahia. O roteiro incluiu, basicamente, a área a ser beneficiada pelo Eixo Norte da transposição, estendendo-se até Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), onde o uso da água do São Francisco já provocou fortes mudanças sócio-econômicas. O sertanejo ainda está descrente de que a transposição ocorra desta vez. Prefere colocá-la na conta de mais um período eleitoral que se aproxima. "Desde menino que a gente ouve falar nessa transposição. A gente já perdeu a fé. Vejo que só se fala isso perto de campanha (eleitoral)", resume Francisco José da Silva, 43, agricultor de Marizópolis, sertão da Paraíba, a cerca de 450 km de João Pessoa. O projeto é uma das prioridades do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, reafirmada agora, após o encerramento da reforma ministerial e a manutenção de Ciro Gomes como ministro da Integração Nacional. A transposição quer beneficiar 12 milhões de pessoas e prevê a construção de dois canais, os eixos Norte e Leste, para levar, no mínimo, 26 mil litros de água por segundo (26 m³/s) para os Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. A concessão para a retirada da água diz que ela será exclusivamente para consumo humano e para saciar a sede animal, mas a expectativa geral de políticos, agricultores e população da região é que ela possa dar impulso a novos projetos de agricultura irrigada. O desperdício já existente, somado a uma coleção de projetos mal estruturados na região, reforça os pontos de vista de cientistas como o paulista Aziz Ab ? Saber, ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), e o pernambucano João Suassuna, do Instituto Joaquim Nabuco. Para eles, sem o adequado planejamento e gerenciamento do uso da água já à disposição, de pouco vai adiantar uma nova obra milionária - R$ 4,5 bilhões na primeira etapa - para levar um pouco mais de água à região. "Não sou contra a transposição, sou contra a falta de planejamento", diz Ab ? Saber. Para ele, o projeto do governo só faria sentido no contexto de um planejamento amplo que contemplasse uma solução global para o semi-árido, sob pena de beneficiar apenas as empreiteiras que irão fazer a obra e os grandes proprietários de terras. Suassuna vai além. Segundo ele, o semi-árido setentrional brasileiro tem capacidade de armazenamento de água de 37 bilhões de metros cúbicos, maior do que em qualquer outra região semi-árida do mundo. O gerenciamento adequado tanto dessas águas como dos mais de 60 mil poços perfurados na região, além do programa de cisternas para aproveitamento de águas das chuvas para beber, resolveria o problema, evitando sobrecarregar o São Francisco, para ele, já sobrecarregado. O chefe de gabinete do Ministério da Integração e coordenador do projeto, Pedro Brito, rebate as críticas. Ele afirma que a principal função dos canais é levar "segurança hídrica" ao semi-árido, perenizando os principais rios e permitindo que sejam usadas as águas dos açudes. Hoje, essas águas não são usadas pelo medo de que venham a faltar. Com isso, acabam se perdendo por evaporação. "Não conheço nenhum argumento técnico que inviabilize ou mesmo que leve à modificação do projeto", sustenta Brito. O cálculo do governo de que serão beneficiadas 12 milhões de pessoas inclui a região metropolitana de Fortaleza e outras grandes cidades, como Campina Grande (PB) e Caruaru (PE), municípios fora das áreas mais castigadas pelas secas. A reportagem do Valor constatou que, em parte, alguns dos rios na rota da água do São Francisco já estão perenizados e o desperdício de água é grande. A partir do município de Aparecida (PB), a cerca de 450 km de João Pessoa, o rio Piranhas, um dos que o governo pretende perenizar com a água do São Francisco, já é perene. Ele recebe ininterruptamente 4 mil litros por segundo (4 m³/s) de água que vem do açude Coremas Mãe d ? Água por intermédio dos 37 quilômetros de uma obra que custou aos cofres públicos R$ 55 milhões (90% do governo federal) batizada com o messiânico nome de Canal da Redenção. Para nada, ou quase nada. A corrente serve para abastecer a pequena cidade de Aparecida, para poucas irrigações, geralmente clandestinas, e, principalmente, como refrescante balneário dominical. O canal, inaugurado em abril de 2002, é parte de um inacabado projeto de irrigação denominado Várzeas de Sousa, que deveria estar irrigando 5.180 hectares de terras férteis, "redimindo" com sua produção de frutas tropicais a pobreza da região. No Ceará, o Vale do Jaguaribe, um dos principais destinos da prometida transposição, também está marcado por exemplos de desperdício e de convívio da pobreza com a proximidade da água. À margem do açude Quixabinha, a comunidade do mesmo nome, pega a água para beber de de bicicleta ou em lombo de jegue. E mesmo no Eldorado sertanejo, a região de Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), às margens do São Francisco e da represa de Sobradinho, a riqueza da sofisticada produção da vinícola Miolo convive lado a lado com a miséria do povoado de Mosquito onde o emprego de salário mínimo na grande lavoura é o sonho a ser alcançado.