Título: Ata e Relatório expõem os dilemas do Banco Central
Autor: Gustavo Loyola
Fonte: Valor Econômico, 04/04/2005, Opinião, p. A13

O "Relatório de Inflação" recentemente publicado, assim como a ata da última reunião do Copom, expuseram as dificuldades enfrentadas pelo Banco Central na condução da política monetária no contexto de um regime de metas de inflação que obedece aos limites do ano-calendário. Passados já três meses do corrente ano, e tendo em conta a inércia inflacionária, tornou-se cristalino que a meta ajustada de 5,1% muito dificilmente será alcançada. Basta considerar que os IPCAs divulgados de janeiro e fevereiro e as expectativas de mercado para o comportamento desse índice em março e abril - cujo grau de confiança é relativamente robusto - apontam para uma inflação acumulada no quadrimestre de 2,32%, o que exigiria uma inflação mensal média inferior a 0,34% nos dois quadrimestres restantes de 2005 para que a meta de 5,1% não venha a ser ultrapassada. Essa média, que implicaria uma inflação anualizada da ordem de 4,1%, exigiria uma rápida convergência das taxas inflacionárias, o que não parece crível na atuais condições estruturais e conjunturais da economia, mesmo na hipótese de apertos adicionais na política monetária por parte do BC, considerados ainda as naturais defasagens entre a ação do BC e os efeitos sobre a economia real. Sob o ângulo estrutural, vale a pena repetir o argumento de que na economia brasileira, em razão de seu passado cronicamente inflacionário, os preços contratuais continuam fortemente indexados à inflação passada, sendo raro ainda encontrar contratos baseados estritamente em valores nominais. Os reajustes salariais anuais continuam, em sua ampla maioria, vinculados à "reposição" da inflação passada, fenômeno agravado pelos altos custos de demissão imbricados na legislação trabalhistas. Ademais, os reajustes de tarifas dos mais importantes serviços públicos, cuja periodicidade é anual, mantêm-se vinculados à inflação passada, com o agravante de que, nesse caso, os índices de referência são da família do IGP. Como se sabe, tais índices são muito afetados pelo comportamento do IPA, que é altamente correlacionado com a taxa de câmbio e com o preço internacional das "commodities". Por outro lado, mirando as condições conjunturais, percebe-se que há também obstáculos sérios à rápida desinflação. Os preços das "commodities" seguem pressionando a inflação, ainda que tais efeitos estejam sendo mitigados pela relativa apreciação da moeda brasileira. Contudo, é com relação ao controle da demanda agregada que, no curto prazo, os problemas do BC parecem mais sérios. De forma simplificada, pode-se dizer que o cerne das dificuldades está na "solidão" dos juros básicos como instrumento regulador da demanda. Num primeiro nível, verifica-se que a política monetária não é ajudada pela política fiscal, pois esta última segue numa trajetória expansionista procíclica, quando mensurada pelo comportamento do gasto público. Num segundo nível, observa-se que, no âmbito da política monetária, os juros de curto prazo são o único instrumento utilizável pelo BC, embora os canais típicos de transmissão de política monetária dêem sinais de mau funcionamento na economia brasileira.

A meta inflacionária de 5,1% será ultrapassada se a inflação mensal média nos 2 quadrimestres restantes do ano não for inferior a 0,34%

Como exemplo do "entupimento parcial" desses canais de transmissão, cabe mencionar a questão do crédito bancário. Graças à melhora do ambiente macroeconômico e a uma série de aperfeiçoamento microeconômicos implementados nos últimos meses, está havendo um deslocamento para a direita tanto da curva de demanda quanto da curva de oferta de crédito. Disso resulta um volume maior de crédito a taxas mais módicas, ainda que na presença de taxas básicas crescentes por força da atuação do BC. Embora seja um fenômeno de natureza transitória e que, no médio e longo prazos, tende a aumentar a potência da política monetária, no curto prazo há um afrouxamento dos "links" entre os juros básicos e a atividade econômica. Além disso, é de se considerar também o problema da estrutura da dívida pública federal e dos passivos bancários em geral, que, em sua maioria, estão vinculados à própria taxa Selic, reduzindo o efeito-preço da variação da taxa básica de juros sobre os portfólios dos agentes econômicos. No mar dessas dificuldades, o BC deve navegar com cuidado. Se, por um lado, navegar é preciso para reduzir a ainda alta inflação brasileira, de outro, é preciso não sufocar a economia brasileira e os devedores líquidos (o setor público, principalmente) com juros desnecessariamente altos. O regime de metas de inflação é um compromisso entre os extremos da discricionariedade ilimitada do BC e da absoluta adesão a uma regra rígida. Felizmente desde a implementação do regime em 1999, tanto a atual administração do BC quanto a anterior tiveram a correta compreensão da necessidade de conciliar regra e discricionariedade. Em vista disso, é razoável inferir que a autoridade monetária não mais busca a meta inatingível de 5,1%. É mais crível a conjectura que o BC procurará manter a inflação de 2005 em torno dos 6%, percentual que seria suficiente para manter a trajetória declinante iniciada em 2003, ao tempo que, na margem, os índices mensais estariam se aproximando da meta de 4,5% fixada para o próximo ano. Entretanto, por causa de um possível efeito negativo sobre as expectativas, o BC pode não se sentir confortável para admitir explicitamente, ainda praticamente no início do ano, que sua meta teria deixado de ser os 5,1%. Daí ter o BC recorrido, nos últimos documentos publicados, a uma linguagem mais sutil, em que insinua a gradual mudança do foco da política monetária, que passaria da meta desse ano para a de 2006. Para evitar esse tipo de problema, não é demais insistir que a melhor opção é a de relativizar a importância das metas de inflação no ano-calendário, dando relevo à idéia de se fixar metas para os próximos doze ou dezoito meses, semelhantemente à forma como trabalha o Banco Central europeu.