Título: No sertão, canal joga água fora há dois anos
Autor: Chico Santos De Sousa e Aparecida (PB)
Fonte: Valor Econômico, 05/04/2005, Especial, p. A12

Um domingo de março, 11 horas da manhã. Sol a pino e calor sufocante na área do sertão paraibano que tem o município de Sousa, a 430 quilômetros de João Pessoa, como principal pólo populacional. Os sinais de seca são evidentes. Um pó branco sobe da estrada de terra que liga a rodovia BR-230 ao povoado de Sítio Acauã, que usa água recolhida em cisternas para beber e cozinhar. As pequenas plantações de milho e feijão não vingaram neste ano. De repente, por baixo de uma ponte de cimento sem muretas surge um rio de águas cristalinas que faz a alegria domingueira dos habitantes da região. É o leito do Rio Piranhas, um dos que estão na lista para serem perenizados pelo Eixo Norte da transposição das águas do São Francisco. O rio, contudo, já está perenizado a partir de alguns quilômetros antes desse "balneário", no município de Aparecida (a leste de Sousa), pois em abril de 2002 ali foi inaugurada uma obra com o sugestivo nome de Canal da Redenção. Com 37 quilômetros de extensão, o canal, construído a um custo de R$ 55 milhões (90% de origem federal), tem o objetivo de levar água do açude de Coremas Mãe d'Água (1,35 bilhão de metros cúbicos de capacidade de armazenagem) para o projeto de irrigação Várzeas de Sousa, com 5.100 hectares de terras irrigáveis. O canal ficou pronto, mas o projeto, não, configurando um dos maiores exemplos de desperdício de água do chamado Nordeste Setentrional, região que o governo quer beneficiar com a transposição das águas do São Francisco. A vazão do Canal da Redenção é de 4 mil litros de água por segundo (4m³/s), 45% da água que se planeja levar pelo Eixo Leste da transposição fora dos períodos de cheia do lago de Sobradinho. "A água vai para os açudes do Rio Grande do Norte e para o mar sem beneficiar ninguém", lamenta o sem-terra Jacodemes Garrido, 38, um dos coordenadores de um acampamento à margem da BR-230, que liga o oeste do Estado à capital João Pessoa. Como depois de pronto o canal não pode ficar sem água, para não ser destruído pela ação do calor, é inevitável o desperdício da água, admite o secretário de Desenvolvimento Econômico do Estado da Paraíba, Francisco de Assis Quintães. Por enquanto, a água que jorra do canal serve apenas para abastecer a pequena Aparecida e para algumas poucas captações, muitas delas irregulares. "Não justifica", reconhece Quintães. O canal termina em uma estação de bombeamento com sete máquinas, destinadas a jogar a água, por meio de tubulações, para uma barragem artificial da qual ela deveria descer por gravidade para as áreas irrigáveis. Tudo está pronto, exceto o projeto de irrigação. Somados os recursos gastos nas obras com os R$ 50 milhões aplicados em desapropriações, o projeto Várzeas de Sousa já consumiu perto de R$ 120 milhões. Setores ligados ao governo federal culpam a política regional pelo fiasco que serve de argumento aos críticos do mau gerenciamento das águas. Os políticos paraibanos se acusam mutuamente. "O que encontramos foi uma obra inacabada e inaugurada", afirma Quintães. Ele disse que vai iniciar o treinamento das 178 famílias selecionadas como primeiros irrigantes dos pequenos lotes e que, nas próximas semanas, define a licitação de 25 lotes empresariais, com extensão de 50 a 300 hectares cada. Já o prefeito de Sousa, Salomão Gadelha (PTB), ex-aliado e hoje adversário ferrenho do governador Cássio Cunha Lima (PSDB), responsabiliza o atual governo por não ter dado prosseguimento ao projeto após o canal ser inaugurado no fim do governo do hoje senador José Maranhão (PMDB-PB). No mesmo domingo em que o Valor conheceu a obra inacabada de Várzeas de Sousa, o prefeito Gadelha foi anfitrião de um ato público pela transposição do São Francisco que acabou sendo mais um comício de lançamento da campanha pela volta do senador Maranhão ao governo do Estado. Ao discursar para uma platéia mais preocupada com o show do grupo Gatinha Manhosa - muito cotado nos roteiros musicais sertanejos -, Maranhão culpou o PSDB pela paralisação do projeto do Canal da Redenção sob alegação de falta de dinheiro. Enquanto os políticos brigam, a água que deveria levar riqueza à região leva pouco mais que lazer para algumas famílias. A menos de 500 metros do leito do rio Piranhas, são construídas cisternas de concreto para captar água da chuva para beber e cozinhar. As cisternas, de 16 mil litros, são parte do projeto de construção de um milhão de cisternas coordenado pela Articulação do Semi-Árido Brasileiro (ASA), com o apoio do governo federal e empresas privadas. O apicultor Hélio Roque de Assis, coordenador do projeto na microrregião de Sousa, que mora em Sítio Acauã, disse que não é possível usar a água do rio Piranhas por falta de outorga. "Até hoje só existe uma outorga (da água do Canal da Redenção). O resto é uso clandestino", disse. Para ele, o canal "só trouxe até agora conflito de terra" e é a maior prova de que não adianta nada levar mais água para o semi-árido sem o adequado gerenciamento das águas já existentes. O acampamento de sem-terra à margem da BR-230, denominado Acampamento Várzeas de Sousa, sob a bandeira da Comissão Pastoral da Terra (CPT), reforça as palavras de Assis. São 58 casebres de pau-a-pique, com telhas de argila, nos quais se revezam cerca de cem famílias desde maio do ano passado, na esperança de obter um lote. Pedro Pereira Lima, 39, três filhos, ocupa uma das casinhas com a mulher e o filho. Embora tenham casa na vizinhança, as famílias estão acampadas para pressionar por uma solução favorável na distribuição de terras. "Fizemos o cadastro e viemos para cá porque nos disseram que aqui seria mais fácil conseguir", contou Lima.