Título: Rio cheio traz incerteza ao agricultor de vazante
Autor: Chico Santos
Fonte: Valor Econômico, 06/04/2005, Especial, p. A12

O rio Jaguaribe, com 860 quilômetros de extensão, é totalmente cearense. Nasce no sertão do Inhamuns, uma das regiões mais pobres do Estado, tomando inicialmente a direção sudeste. Na altura do município de Saboeiro toma o rumo nordeste até que, perto de Orós, apruma para o norte até atingir o mar logo após a cidade de Aracati, famosa no sertão por ser supostamente a origem do vento norte que refresca as noites em locais a 300 km do mar. Largo e torrencial nas cheias, transforma-se em um leito seco na estiagem, sendo perenizado a partir do açude de Orós (1,94 bilhão de metros cúbicos de capacidade), com uma vazão de 12,93 metros cúbicos por segundo (m³/s), de acordo com dados da Companhia de Gestão de Recursos Hídricos (COGERH) do Estado do Ceará. A partir do açude do Castanhão (o maior do país, com 6,7 bilhões de metros cúbicos) passa a ter uma vazão regularizada de 30 m³/s. Em alguns municípios, como Russas (170 km de Fortaleza) e Jaguaribe (313 km da capital), ambos já no trecho perenizado do rio, o final do período de cheia é ansiosamente aguardado por famílias que, sem dispor de terras, aproveitam a fertilidade deixada pelas águas nas largas várzeas para cultivar feijão, milho e hortaliças. O cientista Aziz Ab'Saber tem manifestado a preocupação de que, com o aumento do volume do Jaguaribe pelas águas do São Francisco, as áreas de vazante sejam insuficientes para o trabalho desses agricultores. "Eu planto dentro do rio. Vai ser ruim (se aumentar muito a vazão). Se tivesse uma terrinha nos beiços (margens), aí melhorava", disse Antônio Bezerra de Souza, 58, cinco filhos e dez netos, vazanteiro de Jaguaribe. "Já ouvi falar dessas águas (do São Francisco), mas até agora ninguém falou comigo. Há 22 anos vivo plantando aqui nessas vazantes. É o meu meio de vida. Não sou aposentado", conta "seu" Antônio, em frente à casa da filha Maria Sandra de Souza Silva, no paupérrimo bairro de Beira-Rio. Com três filhos, Maria tem como única renda fixa os R$ 95,00 do Bolsa-Família. Francisco Alves de Souza, 58, que controla carros-pipa em um ponto de abastecimento do Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Jaguaribe, afirma que "nem 2% das várzeas são plantadas. Aqui a água (do rio) é toda perdida". Segundo Auricélio Teixeira Lima, diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jaguaribe, os vazanteiros, que plantam de julho a setembro, já sofrem com o descontrole da vazão das águas do açude de Orós. "A água passa aqui dando bom dia, boa tarde e boa noite e vai direto para o Castanhão", lamenta. Lima disse temer que a chegada da água do São Francisco mantenha a mesma situação e beneficie só os mais ricos, como os criadores de camarão. Em Russas, abaixo do açude Castanhão em direção ao mar, a importância da cultura de vazantes é tanta que a prefeitura, com a ajuda das comunidades ribeirinhas, cercou 300 hectares de terras para evitar que o gado das fazendas da beira do rio pastasse onde os vazanteiros plantam. "A riqueza nunca foi tanta quanto nessa safra", conta José Raimundo da Costa, 82 anos. "Deu mais de 200 sacas." O coordenador do Departamento de Agricultura da prefeitura de Russas, Dernival de Oliveira Barbosa, avalia que o aumento da vazão do Jaguaribe pela chegada das águas da transposição não vai acabar com as áreas de vazante. Russas, diz, tem 15 mil hectares de terras irrigáveis, mas usa 1,5 mil. Deusemar Ferreira da Costa, filho de Raimundo e presidente da Associação Comunitária de Gracisman, povoado com 120 famílias, também diz que se as águas subirem "até 20%" com a chegada da transposição não vão atrapalhar a cultura de vazante. Segundo ele, os vazanteiros chegam a tirar até duas safras de feijão por ano. A plantação é adubada com esterco, sem uso de agrotóxico. Apesar da disponibilidade de água e de as vazantes serem uma alternativa de agricultura, Costa disse que a renda do agricultor é baixa e cerca de 60% das famílias dependem do Fome Zero. "A terra é pouca para muitos", explicou. Para ele, "aumentar a água (do rio) é bom, mas sem apoio ao pequeno, não adianta". O chefe-de-gabinete do Ministério da Integração e coordenador do projeto do São Francisco, Pedro Brito, afirma que os agricultores de vazantes serão "diretamente beneficiados" pela perenização de "cerca de mil km de rios" que a obra garantirá. (CS)